Ainda em contexto de pandemia foi anunciada a decisão do Papa Francisco de convocar um Ano Santo para 2025, que celebra os 1.700 anos do I Concílio Ecuménico de Niceia, actual Iznik, na Turquia. Como preparação para o grande Jubileu foi convocado um Sínodo (2023-2024), em duas fases, inteiramente dedicado à questão da Sinodalidade na Igreja. Este termo está vinculado aos primeiros Concílios Ecuménicos e foi resgatado pelo Concílio do Vaticano II, que o traduziu por «Igreja de Comunhão».

Foram dois anos a repensar a estrutura da Igreja Católica e a sua acção missionária no mundo, para se entender bem a questão conciliar debatida em Niceia, no ano 325. Com este objectivo, Francisco promoveu antecipadamente uma sondagem global a fim de obter uma ampla visão do estado da Igreja Católica no mundo. As respostas que chegaram a Roma das plurais dioceses dividiram-se entre ortodoxia, os alinhados com o Magistério da Igreja, e heterodoxia, os não alinhados.

Neste contexto, o Papa definiu três temas concretos de estudo para os teólogos que integram a Comissão Teológica Internacional, são questões prementes e que se relacionam com o I Concílio de Niceia: cristologia, antropologia, criação. Um número reduzido de mulheres teólogas integram a Comissão, mas Francisco apelou para que haja um equilíbrio sem desvantagem numérica. Ou seja, o Papa quer dar protagonismo ao pensamento das mulheres, quer a participação activa delas nos assuntos da Igreja. Mas, como?! Haverá um modo diferente de pensar o Cristianismo? O que é que o Papa Francisco pretende ao desafiar a Igreja para uma integração proporcional das mulheres nos diversos Dicastérios? Quanto a isto, o Sínodo não foi conclusivo, deixou muitas questões em aberto para continuarem a ser pensadas em comunhão de Igreja. Francisco preferiu delegar na acção do Espírito Santo a edificação da plena unidade entre todos os cristãos. Porém, uma questão esteve em falta no Sínodo e refere-se ao motivo que levou à convocação do I Concílio Ecuménico de Niceia, no século IV. Foi precisamente neste Concílio onde se enfrentou a questão do protagonismo da mulher no Cristianismo. Explicamos numa breve síntese o que se debateu em Niceia, ainda com grandes repercussões nos dias de hoje.

No século IV, da Era cristã, a Igreja enfrentava várias correntes heterodoxas originadas por cristãos convertidos vindos do judaísmo e do helenismo. Estes cristãos introduziram nas primeiras comunidades elementos próprios das respectivas religiões e culturas. Além disso, nos três primeiros séculos deu-se um reflorescimento dos sistemas filosóficos da Antiga Grécia, sobretudo, através do filósofo sírio Numénio (séc. II) e do filósofo grego Plotino (séc. III). Estes dois filósofos da Antiguidade tardia dirigiram escolas de filosofia em Roma por largos anos e, de algum modo, estiveram em contacto com a doutrina cristã. Por exemplo, um dos principais mestres de Plotino, Amónio Saccas, era filho de pais cristãos. Influenciados principalmente pelas doutrinas de Pitágoras, Platão e Aristóteles conceberam aquilo que hoje se designa por neoplatonismo e neopitagorismo. Trata-se de uma renovação sincrética da filosofia grega antiga. O filósofo Numénio defendia a existência de três princípios, ou divindades: o primeiro corresponde ao Bem, o segundo é uma réplica do primeiro, o demiúrgo, o terceiro deriva do segundo e corresponde ao mundo da matéria. Nesta hierarquia descendente os princípios derivados perdem qualidade, por isso, a matéria é colocada no extremo oposto ao Bem e é entendida como o Mal em si mesmo, inconvertível ao primeiro princípio. Portanto, Numénio concebe a realidade com base em dois princípios coeternos e antagónicos: o Bem e o Mal. Neste sistema, o ser humano, composto de alma e matéria, situa-se no centro do conflito entre divindades que se opõem. Daí a necessidade de uma entidade intermédia para reconduzir ao Bem a alma caída na matéria. No sistema do filósofo sírio é a matemática, como ciência, que elevará a alma do mundo da matéria para o mundo inteligível e eterno. Ou seja, a alma que tinha perdido capacidades intelectuais no contacto com a matéria, deveria compreender a estrutura intrínseca da matéria, que é matemática, para se libertar dela.

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Quase um século mais tarde, o filósofo Plotino, embora influenciado por este modo de entender a existência, concebe um sistema diverso no qual transforma os princípios de Numénio em hipóstases. O termo grego “hipóstase” significa, em latim, “substância”. Mantendo o sistema hierárquico das processões, Plotino, define três hipóstases: o Uno, a Inteligência, a Alma. São também divindades. O Uno replica a Inteligência, esta replica a Alma, esta replica as almas dos seres vivos e o mundo corpóreo. Neste sistema plotiniano, a matéria mantém-se relacionada com o Mal, mas ambivalente: a matéria inteligível, convertível ao Bem, e a matéria residual, o mal puro. Plotino defende, no seu sistema, a reconversão da alma ao Uno através de um processo regressivo e ascético, no qual a hipóstase da Inteligência tem um papel fundamental: o de orientar a alma à contemplação inteligível do Uno. Pelo facto de a matéria estar relacionada com o mal, a filosofia grega não concebia a estrutura do ser humano na sua integridade de corpo e alma espiritual. Defendia a separação definitiva da alma e do corpo após a morte. Estes dois sistemas filosóficos, neoplatonismo e neopitagorismo, deram origem às principais heresias do docetismo gnóstico, do maniqueísmo e do arianismo em que os seus mentores interpretavam a fé cristã com base nestes sistemas. Ou seja, estava em causa a veracidade da Incarnação de Deus na história da humanidade, em Jesus Cristo. Nos três primeiros séculos da Era cristã alguns Padres da Igreja, entre eles, Clemente Alexandrino, Orígenes e Tertuliano fizeram uma síntese entre os sistemas filosóficos vigentes e a Revelação a fim de enfrentar a heterodoxia, que ameaçava a compreensão da fé cristã. Mesmo assim, nos séculos III e IV, o arianismo propagou-se a quase toda a cristandade. A versão do presbítero alexandrino Ario (256-336), seu mentor, negava que Jesus de Nazaré fosse Deus, a omnipotência divina não podia imiscuir-se na matéria nem assumir uma alma racional. Delineados os pressupostos a debater em Niceia, reuniram-se em concílio os defensores da ortodoxia da fé cristã, assente na Revelação, e os que defendiam esta mesma fé segundo o sistema neoplatónico.

O bispo Atanásio de Alexandria foi o grande protagonista deste Concílio ao definir as bases da teologia Trinitária e da Cristologia, desenvolvidas depois pelos Padres da Capadócia, Basílio, Gregório de Nazianzo e Gregório de Nissa. Atanásio apresentou uma redefinição de conceitos face às três hipóstases do sistema filosófico de Plotino. Utilizou o mesmo termo «hipóstase», mas para definir cada Pessoa da Santíssima Trindade: Pai, Filho e Espírito Santo. Uniu-as numa única natureza que identificou com o termo grego «homooúsios», demostrando que os três são coeternos e consubstanciais. Para o Cristianismo não se tratava de processões hierarquizadas, mas de uma comunhão de Pessoas, na mesma natureza. Nesta unidade Trinitária de Pessoas pôde definir a Cristologia e a Incarnação, na qual a segunda Pessoa da Trindade, o Filho, realiza a união hipostática entre a natureza humana e a divina no seio virginal de uma mulher, Maria de Nazaré. Este acolhimento da Palavra substancial na substância da fé infusa, em Maria, consolida a unidade integral do modo de ser pessoa. É o consentimento desta mulher, de dar forma humana a Deus, que possibilita uma nova criação, a renovação de todo o género humano. É esta mulher que invalida a disseminação do pensamento grego na hipóstase da fé cristã. A génese da discriminação da mulher está neste acontecimento.

Opuseram-se-lhe todas as formas de ressurgimento neoplatónico ao longo dos séculos, conduzidos pelo gnosticismo e pelo arianismo que nunca se extinguiram. Mais próximo da nossa época, tornaram-se de novo visíveis nos princípios arquitectónicos do modernismo (iluminismo, liberalismo, positivismo), a partir dos quais se inicia o processo de regressão às hipóstases do sistema filosófico de Plotino e de Numénio, onde a matemática e a hipóstase da Inteligência adquirem especial relevo com o universo digital. Neste processo, a alma racional é privada da metafísica cristã e fica condicionada ao mundo empírico e à fenomenologia. Sobrepõe-se-lhe o avanço científico e tecnológico na configuração da hipóstase da Inteligência, a única que conduzirá a humanidade para além de si mesma libertando-a da malignidade intrínseca da matéria. As guerras que disseminam o mundo têm aqui o seu princípio, são guerras contra a unidade integral da pessoa humana por fazer parte do mundo da matéria. São guerras contra a união hipostática realizada em Jesus Cristo. Por isso se investe tanto na Inteligência Artificial e nos avatares humanos, em algo que o I Concílio Ecuménico de Niceia inviabilizou ao enfrentar as categorias de realidade neoplatónicas. É nisto que se centra o apelo do Papa às mulheres, pede-lhes que devolvam o sentido da esperança ao mundo. Melhor do que ninguém elas sabem em que consiste a inteligência artificial.