Entre os vários acontecimentos que dominaram a agenda mediática na semana passada, houve um que passou largamente despercebido e que deveria ter merecido atenção redobrada por parte dos nossos protagonistas nacionais: a visita de G. John Ikenberry a Portugal.
G. John Ikenberry é, antes de mais, um dos grandes pensadores das relações internacionais do nosso tempo. Expoente do internacionalismo liberal, a corrente das relações internacionais cuja principal preposição teórica nasce do desejo de adoptar uma ordem internacional ancorada em instituições e instrumentos de cooperação multilaterais, mandatados para promover a democracia, a liberdade, a segurança colectiva, os direitos humanos, o Estado de Direito ou o livre comércio.
Às seis da tarde da passada quinta-feira, no auditório da Fundação Luso-Americana (FLAD), Ikenberry conversou com Carlos Gaspar, o interlocutor natural do lado português.
Ouvindo-os, percorremos não só a soma dos inegáveis sucessos alcançados na edificação da ordem liberal, bem como as falhas, as transgressões morais e os erros cometidos nas últimas três décadas pelo Ocidente.
Ao ouvi-los, percebemos que a ordem liberal internacional atravessou, no último século, uma larga estrada de avanços e recuos e que, apesar de tudo, continua a ser o sistema mais seguro para as democracias no mundo.
Este encontro dignifica a instituição que o promoveu – a FLAD –, que, sendo dona de um passado histórico de reflexão, não abdica de se interrogar acerca do futuro. Este foi, sem dúvida, um desses momentos.
O futuro da ordem liberal internacional encontra em Ikenberry um reflexo dos próprios desafios com que se depara. Dito de outro modo: as reflexões, as dúvidas e as metamorfoses da arquitectura intelectual de Ikenberry são paralelas aos desafios aos quais nós próprios, do lado de cá do oceano, não nos devemos privar de perscrutar.
O eco do que se passou na última década no funcionamento disfuncional da ordem liberal internacional deveu-se à acústica criada pela crise financeira de 2008, pela emergência dos populismos e pela ressurgência de potências revisionistas.
Como se vê, a degradação do internacionalismo liberal foi, em larga medida, auto-infligida.
Aliás, a perturbação nasce da contradição de o sistema internacional liberal conter no seu interior as sementes da sua própria destruição.
No mais, a ordem liberal liderada pelos EUA tem perdido o seu magnetismo. Basta olhar para os últimos dados do Democracy Index 2021 para comprovar o recuo dramático da democracia no mundo.
Em boa verdade, foi o Ocidente que propiciou uma vaga de críticas ao seu próprio modelo.
Em paralelo, a ordem liberal internacional é desafiada por duas potências revisionistas, a Rússia e a China, ressuscitando velhas e outras ambições.
Com notável inteligência, Ikenberry interroga-nos sobre o essencial: quais as perspectivas da ordem liberal internacional? Como podem os sistemas capitalistas e as democracias liberais ser reconciliados e reformados? Como podem ser balanceados valores cruciais da ordem liberal em permanente tensão, como sejam a igualdade e a liberdade; a abertura e a solidariedade social ou a soberania e a interdependência? A guerra na Ucrânia é um sinal do tremendo fracasso da ordem liberal ou da sua regeneração?
Ikenberry quis dizer-nos que de um lado está um sistema liberal, assente em princípios ordenadores das relações entre os Estados, e do outro, um sistema autocrático, cuja formação depende de critérios geográficos e é dominada por pulsões imperiais. De um lado, cooperação, do outro imposição.
Alguém acredita que os obstáculos ou as dificuldade decorrentes da evolução tecnológica, das alterações climáticas ou de novas vagas pandémicas podem encontrar resposta no segundo modelo?
A excepcionalidade do pensamento de Ikenberry contraria o pressentimento vagarosamente instalado, e tão bem enunciado na fórmula utilizada por Niall Ferguson, de que à semelhança do Sacro Império Romano, também a Ordem Liberal Internacional não é ordem, não é internacional e não é liberal.
Ikenberry trouxe-nos, de forma cativante, uma nova narrativa da civilização ocidental.
Não foi só Ikenberry que saiu do frio. Nós, de um modo ou de outro, também acabaremos por fazê-lo.
A questão é: com que reflexão?