Milhares de pessoas terão sido assassinadas a tiro, catana, queimadas vivas… Talvez tenham sido três mil. Talvez mais. Talvez menos. Dificilmente sairemos do domínio das estimativas porque nunca houve a preocupação de saber o seu número ou as circunstâncias da sua morte. Eram brancas, negras, asiáticas, mestiças. Em Portugal, nos jornais, nas rádios e na televisão nunca houve dúvidas: tratou-se de uma “aventura colonial da última hora” por parte da “miuçalha branca” que ensombrou o “momento de júbilo”.

Comecemos pelo “momento de júbilo”? Estamos em Setembro de 1974. Os portugueses são informados de que “O Estado português, tendo reconhecido o direito do povo de Moçambique à independência, aceita por acordo com a Frente de Libertação de Moçambique a transferência progressiva de poderes que detém sobre o território nos termos a seguir enunciados.

Ou seja, o que em Moçambique temiam, quer as minorias branca e oriental, quer os simpatizantes e dirigentes negros de vários partidos e movimentos nacionalistas, estava consumado: os moçambicanos, a quem menos de três meses antes Almeida Santos, ministro da Coordenação Interterritorial garantira um referendo para decidirem o futuro daquele território, iriam passar a viver numa república popular dirigida pela Frelimo. Como o ministro dos Negócios Estrangeiros, Mário Soares, declarara a 6 de Setembro ao chegar a Lusaka para firmar os acordos com a Frelimo: “a delegação portuguesa estava na Zâmbia para entregar o poder à Frelimo.” De facto era isso que estava a acontecer. É portanto este “o momento de júbilo”. E é aqui que começa a “última aventura colonial” protagonizada pela “miuçalha branca”.

A 7 de Setembro, o Rádio Club de Lourenço Marques é ocupado e passa a designar-se Rádio Moçambique Livre. Os ocupantes declaram-se contra o que definem como entrega de Moçambique à Frelimo. Entre os ocupantes do Rádio Club  estão também líderes nacionalistas negros como Joana Simeão, Paulo Gumane e Uria Simango. Apelam à intervenção de Spínola, com quem alguns, na qualidade de membros da FICO (Frente Integracionista de Continuidade Ocidental), se tinham encontrado tempos antes no Buçaco. Aí, garantem, o Presidente da República ter-lhes-ia dito “Façam vocês qualquer coisa que mostre a vontade da Província, para eu vos apoiar.” Eles fizeram “qualquer coisa”. Mas em Setembro de 1974, com o Acordo de Lusaka já firmado, com Spínola cada vez mais fragilizado e obcecado com o futuro de Angola, era tarde demais para que o apoio do ainda presidente da República se pudesse fazer sentir. Os revoltos resistem até 10 de Setembro. Entretanto a violência explodira: violações, gente decepada, queimados vivos, linchados e vários desaparecidos.

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Os acontecimentos do 7 de Setembro de 1974, a violência que os acompanhou e a vaga de repressão que lhe sucedeu marcam um antes e um depois: até ao final de Agosto de 1974, tinham deixado Moçambique 5 mil portugueses. Mas só nas últimas semanas de Setembro e primeiros dias de Outubro saem de Moçambique oito mil portugueses para a África do Sul. Em Lisboa começam a cair pedidos de transferência para a “metrópole” de professores, carteiros, funcionários dos caminhos-de-ferro, da aeronáutica, dos bancos. Em Dezembro, segundo revela Vítor Crespo, Alto-Comissário de Moçambique, em Lourenço Marques sobrava apenas um ginecologista e já nenhum ortopedista.

Simultaneamente a repressão cresce no território administrado por Portugal. O Alto-Comissário Vítor Crespo institui que questionar a representatividade da Frelimo é um crime contra a descolonização e um sinal de racismo. Militares e agentes de segurança portugueses desempenham um papel activo na detenção, interrogatório e entrega à Frelimo daqueles que se lhe opõem, nomeadamente de dissidentes da Frelimo e nacionalistas negros que participaram na revolta do 7 de Setembro. Por grotesca ironia a revolta em que os jornais só viam brancos não só teve a participação de dirigentes negros como estes pagaram com a vida o seu protagonismo nestes acontecimentos: Joana Simeão, Paulo Gumane e Uria Simango, além doutros dissidentes da Frelimo, seriam internados em campos de reeducação daquele movimento e queimados vivos mais tarde.. (No caso de Uria Simango a sua própria mulher, Celina, foi também morta.)

Mas a imprensa portuguesa em 1974 não tem dúvidas: no 7 de Setembro está-se perante uma “revolta dos colonos brancos”, uma “aventura colonial da última hora” protagonizada por “rebeldes brancos”, “miuçalha branca”, “grupúsculos”, “reaccionários”, “ultra reaccionários”, “racistas”, “colonialistas” … que ensombraram o “momento de júbilo” representado pela assinatura do Acordo de Lusaka.

Meio século depois o que surpreende não é que o 7 de Setembro de 74 em Moçambique tenha sido relatado assim mas sim a certeza de que hoje voltaria ser relatado assim. Porque, tal como aconteceu a propósito do 7 de Setembro de 74, não se trata tanto da imposição duma visão dos factos e do seu silenciamento mas sobretudo do poder de instituir o medo de perguntar.  Do medo de ser rotulado. Do medo de passar para o lado dos controversos, que é meio caminho andado para passar a conservador e de conservador a reaccionário e de reaccionário a outra coisa qualquer já sem retorno social possível.

Meio século depois quantos crimes foram necessários para chamar ditador a Maduro? Ou o que vai ser necessário para que deixe de ser visto como um risco denunciar a ideologia de género nas escolas? E por quanto tempo mais vamos ter de esperar para que se perca o medo de desmontar as efabulações sobre a escravatura como pecado do homem ocidental e branco que se tornaram uma espécie de mantra obrigatório?…

O 7 de Setembro de 1974 em Moçambique tem muito de perturbante. Mas o facto de sabermos tão pouco sobre o que ali aconteceu nessa data também.