A meio da tarde de ontem, tivemos um momento simbólico. António Costa tinha ascendido ao trono parlamentar para gozar o seu triunfo. Estava ele a começar a debitar as glórias de oito meses de governação, quando todos os canais noticiosos o calaram, e as emissões passaram para Bruxelas, para a conferência de imprensa de outro socialista, o comissário europeu Pierre Moscovici. Há quarenta anos, na noite de 25 de Novembro de 1975, aconteceu uma coisa parecida ao capitão Duran Clemente. Procedia ele na RTP à exaltação do Processo Revolucionário em Curso, quando de repente a emissão mudou para o Porto e ele desapareceu do ecrã.
Ontem à tarde, em Lisboa, Costa começara a falar de um país extraordinário, onde havia “uma maioria estável”, “normalidade institucional”, “paz social”, “recuperação de rendimentos”, e até um “novo modelo de desenvolvimento”. Em Bruxelas, Pierre Moscovici veio falar de outro país. No país de Moscovici, o défice desceu do recorde socialista de 11,2% em 2010 para 4,4% em 2015 (segundo o Eurostat), mas manteve-se acima dos limites combinados com a Comissão Europeia.
O défice, ao contrário do que insinua a actual maioria parlamentar, não é uma simples birra estatística ou ideológica. Para uma das economias mais endividadas e estagnadas da Europa, que só o BCE separa da bancarrota, o défice é um problema de financiamento externo. É a prova de que o país não pode viver sem Bruxelas, e a razão pela qual os canais de notícias portugueses acham que é mais importante ouvir Pierre Moscovici do que António Costa.
Segundo a actual maioria, Portugal está sob “ataque” de Bruxelas. Mas quem é que ataca quem? A determinação portuguesa de “atacar” os recursos europeus, nomeadamente por meio do BCE, é notória. Havia outra via: consolidar as contas públicas e estimular o investimento e o emprego, de modo a ter de recorrer menos às facilidades europeias. Mas para isso, os nossos oligarcas teriam de pôr em causa as relações de favorecimento e de dependência em que têm baseado o seu poder, e que estrangulam a economia com barbaridades burocráticas e fiscais. O actual governo rejeita essa opção. Confia em que para a UE, por razões políticas, será sempre mais conveniente financiar Portugal. É assim o próprio governo, com a recusa de reformas, que fomenta a sujeição financeira em que está das autoridades europeias.
Em 25 de Novembro de 1975, os revolucionários ainda mandavam nos estúdios da RTP em Lisboa, mas já não controlavam o país. António Costa está numa situação semelhante: manda no governo, mas não controla a economia, que não faz o que estava previsto na cartilha do “fim da austeridade”: o investimento cai, as exportações abrandam, o desemprego mantém-se. De que se lembra o governo, para cobrir o desfazer das suas ilusões? De copiar, ponto por ponto, o discurso do governo anterior. Agora, Costa diz que também herdou um desastre, como em 2011. Também se propõe equilibrar as contas, como em 2011. E também julga ter direito ao apoio do PSD e do CDS, como em 2011 o PSD e o CDS julgavam ter direito ao apoio do PS. Este déjà-vu é a medida do imenso impasse em que a política portuguesa caiu, e que a oligarquia no poder tenta disfarçar com uma guerra imaginária entre a esquerda e a direita.
Perante a bancarrota de 2011, o PSD e o CDS tiveram de sacrificar a simpatia das clientelas internas à credibilidade externa. Agora, o PS, o PCP e o BE aproveitam para fazerem o inverso, e arriscam o crédito e a confiança a fim de mobilizarem eleitoralmente funcionários e pensionistas. Enquanto esse for o caminho, as emissões televisivas vão mudar mais vezes para Bruxelas.