Na sexta-feira, o debate sobre o estado da nação resumiu-se à especulação sobre o estado da geringonça. No entanto, a geringonça não é a nação. Essa distinção, porém, parece ter-se tornado demasiado subtil para o jornalismo oficioso. Voltemos, no entanto, à nação.

Nada é auspicioso: a economia deixou de convergir com a Europa ocidental, os portugueses formam hoje uma sociedade envelhecida e endividada, e não é possível culpar o mundo. Desde o século XIX, Portugal prosperou com o resto do mundo. Ora, nas últimas duas décadas, a economia mundial integrou-se e cresceu como nunca tinha crescido antes. Mas pela primeira vez desde a segunda guerra mundial, o país não aproveitou a onda. Pelo contrário, divergiu das médias europeias. Porque não dispunha dos recursos adequados? Desde a década de 90, que forrámos o país de auto-estradas, e dotámos cada vez mais gente de mestrados. Mas só porque o Zé agora é mestre e pode ir de Lisboa a Bragança numa fracção do tempo da antiga viagem, nem por isso esta época deixou de ser a de menor expansão relativa da economia portuguesa depois de 1945. Tem de haver outra explicação. O Euro? Mas o Euro não impediu outras economias de crescer – até a da Grécia, antes da crise de 2010.

Estamos integrados no maior mercado do mundo, não faltam autoestradas e temos feito o devido esforço de escolarização. Por aí, nunca estivemos tão bem. O problema é que também somos um país de “rendas”, isto é, um país onde frequentemente o objectivo da empresa, do grupo profissional ou do indivíduo é obter do poder político posições protegidas, que lhes garantam um rendimento que, num sistema aberto e concorrencial, nunca conseguiriam. Essas “rendas” infligem à economia uma carga fiscal e regulatória que só a pode tornar mais inflexível e menos competitiva. Nos anos 70 e 80, havia maneiras de gerir esse peso: por um lado, a desvalorização monetária, para moderar salários sem suporte na produtividade; por outro, a tolerância de mercados paralelos, para adquirir flexibilidade. O Euro e o cuidado com a desigualdade liquidaram ou limitaram esses expedientes. O sistema foi-se tornando irrespirável.

Que fazer? Poder-se-ia apelar aos jovens que não querem favores, mas carreiras regidas pelo mérito; aos pensionistas que não querem promessas, mas uma segurança efectiva; aos investidores que não querem excepções, mas regras simples; aos funcionários que não querem ser a carne para canhão do sindicalismo comunista, mas profissionais respeitados e devidamente remunerados. Mas a lição política que todos decidiram tirar do ajustamento de 2011-2014 não foi essa, mas esta: quem afrontar os interesses instalados, estará apenas a dar aos seus rivais a possibilidade de representar esses interesses. Num país em que cada vez menos gente vota, são as clientelas do Estado quem mais tem razão para falar, marchar e votar. A governação tende assim a ser concebida como pouco mais do que a barricada do existente.

Mas há outra lição a tirar do ajustamento de 2011-2014: é que a liberalização funciona — sacudiu a estagnação do princípio deste século, e preparou o país para tirar um pouco mais de partido da prosperidade mundial. Pode, por opção política, não haver força interna para reformas. Mas não quer dizer que tudo fique na mesma. Como a dependência externa por via do endividamento não diminuiu, as coisas terão de se tornar diferentes quando os estrangeiros se recusarem a emprestar mais. Na prática, estamos apenas a deixar para os outros a decisão de como vamos viver. Até lá, continuemos a debater a geringonça.

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