Não foi um processo consciente mas creio que comecei a discriminar emocionalmente pessoas aí a partir dos meus 16 anos. Em que tipo de discriminação emocional me meti eu, nessa verde adolescência? No fundo, comecei a achar que as pessoas de esquerda valiam mais do que as outras. Escrito assim parece absurdo, eu sei. Mas os leitores sabem que uso estas crónicas como espaço de confissão pública, ainda que as admissões sejam tantas vezes ridículas. A nossa imprensa está cheia de gente que busca por razoabilidade, valor que pouco me comove. Interessa-me sim, quando escrevo, irrazoabilizar-me aos olhos dos outros. Logo, hoje quero reconhecer que na juventude passei a achar que as pessoas de esquerda valiam mais do que as outras.

Como definiria as pessoas de esquerda e por que razão passaram elas a encantar-me mais do que as outras? Sucintamente, as pessoas de esquerda eram para mim as pessoas que sabiam mais do que eu e que tinham uma sensibilidade mais apurada do que a minha. Procurando eu ser mais sábio e sensível, as pessoas de esquerda tornavam-se também uma via para a concretização desse desejo duplo, caso fosse bem sucedido a aproximar-me delas. As pessoas de esquerda encantavam-me porque me prometiam um mundo maior do que o meu (claro que tudo isto revela também que havia demasiada adolescência na minha adolescência).

Não quero ser preciso, científico ou sociologicamente rigoroso na categorização que faço acerca das pessoas de esquerda. Mais do que representarem um programa ou uma visão do mundo, eram pessoas que assim designadas inspiravam a tal sabedoria ou sensibilidade que ambicionava para mim. As pessoas de esquerda liam muito, viam filmes estranhos com prazer, dançavam em concertos de música difícil—tudo isto me fascinava, caramba! Afinal, o que vêem elas que eu não vejo e como posso eu ter acesso às mesmas visões?

Assim, de 1993 até 2000 e tal, vivi valorizando mais as pessoas de esquerda do que as outras. Quis ser de esquerda mais ou menos até o ano 2000, 2000 e pouco. Algo curioso aconteceu então: até quando já não me sentia de esquerda, continuava a considerar as pessoas de esquerda mais sábias e sensíveis. Nessa fase, tentava conquistar as pessoas de esquerda porque, mesmo que de esquerda já não me sentisse, sentia que elas ainda valiam mais do que as outras. Há muita gente que fica assim uma vida inteira. O que trouxe a tal mudança então? Os meus filhos. À medida que os meus filhos iam nascendo e crescendo, não sendo eles de esquerda nem de outro lado qualquer, entendi que eles valiam tanto como as pessoas de esquerda. Acordei para o absurdo em que vivia: uma pessoa de esquerda não vale mais do que as outras! Os meus filhos, venham a ser de esquerda ou de outro lado qualquer, não valem menos do que pessoas de esquerda.

Se repararem, até agora não usei a expressão “de direita”. Porquê? Para ser sincero, não acredito em ser de direita. Tenho uma opinião impopular e até incoerente: só há pessoas de esquerda, as pessoas de direita não existem. Ser-se de direita é um equívoco. Acredito em pessoas de esquerda porque ser de esquerda é mais do que uma adesão ideológica—é a expressão de que, com as coisas bem feitas, este mundo vai lá. A esquerda não existe como um critério político, filosófico ou moral. A esquerda é o conjunto de atitudes e disposições que, na prática, crê que o mal é reversível. A melhor descrição do que é ser de esquerda, para mim que sou pregador de profissão, é considerar o capítulo 3 do livro do Génesis (ou qualquer história do pecado como condição humana de partida) um exagero. O que separa esquerda da suposta direita (que realmente não existe) não é política, é pecado. Para mim, a esquerda não aceita realmente o pecado.

Mas divago. O que interessa é que os meus filhos me mostraram o disparate que era discriminar pessoas. Afinal, não quero que ninguém discrimine os meus filhos, ainda que padeçam de um irreversível defeito que é terem-me como pai. Hoje sei que as pessoas de esquerda, mesmo quando exercem algum fascínio em mim, não valem mais do que os meus filhos ou qualquer outra pessoa que não seja de esquerda. Quando deixei de pensar que as pessoas de esquerda eram mais sensíveis ou sábias, o meu mundo perdeu arestas e ganhou curvas: agora sinto-me capaz de dar uma séria volta nele.

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