Foi a escola que fez com que o futuro das crianças fosse, para elas todas, mais justo. E foi porque a obrigatoriedade da escola retirou as crianças do trabalho e as devolveu ao seu direito de serem crianças, do qual não se afasta o direito a aprenderem, que todos aceitámos que o trabalho infantil é um atentado ao seu desenvolvimento e passámos a reprimir e a castigar quem com ele pretendia afastar crianças do seu direito à infância.
Deixámos — há muito, felizmente — a perspetiva das crianças como elementos contributivos para a economia da família e parecemos ter, agora por outros motivos, crianças a contribuírem para uma ideia de infância onde volta a não se ter tempo para se ser criança. Como se pouco importasse a forma como elas repartem o seu tempo entre o trabalho e os tempos livres. E fosse pouco relevante que os tempos das aulas parecessem expandir-se para cima dos recreios, engolindo-lhes tempo de convívio, de correria, de algazarra e de brincar. Ou que os ateliês de tempos livres se tenham transformado em locais onde elas realizam os “trabalhos de casa” (numa mesma perspetiva mecânica, como se ninguém se incomodasse pelo facto de eles serem mais escola fora da escola). E que os centros de explicações proliferassem intensamente (como se o facto de a escola não as ensinar a aprender nem as ensinar a estudar exigisse que as crianças tivessem mais escola a propósito da escola). E que — a pretexto duma actividade desportiva, da formação musical ou de atividades lúdicas — houvesse muitas mais a terem outras escolas a concorrerem, em grau de exigência e em ânsia de protagonismo, com a própria escola.
Porque a escola é demasiado séria e demasiado preciosa, em nome da salvaguarda do seu desenvolvimento saudável, as crianças foram protegidas do trabalho infantil com o auxílio da própria escola. Mas, entretanto, pelas consequências da forma como ela tem sido interpretada, a escola tem comprometido a infância. E tem transformado, através de atividades escolares em exagero, o direito à infância num novo tipo de trabalho infantil.
Começa, pois, a ser urgente que se acerte onde termina a escola, como direito inalienável das crianças a aprenderem, sem que comprometam o seu direito a serem crianças, e onde começa a escola como novo trabalho infantil. Deverão as crianças trabalhar mais do que cinco horas diárias, em função do seu desenvolvimento, sem que deixem de ter duas horas de tempo livre, todos os dias? Será razoável que haja crianças que comecem a trabalhar às 8 e terminem de trabalhar às 8, todos os dias? Será sensato que, em nome de um futuro melhor, não ponderemos as consequências que este novo trabalho infantil traz a tantas crianças que, do mesmo modo que muitas outras viram comprometido o seu futuro pelo trabalho que lhes roubou a infância, estarão, em nome do futuro, a fazer com que a escola possa comprometer o seu? Serão crianças mais informadas à custa do tempo que tiramos à infância — e sem espaço para “a escola da vida”, e para o brincarem, e para (pelo menos) terem direito aos aspetos felizes que os seus pais reconhecem nas suas próprias infâncias, sem que os procurem replicar nas dos seus filhos — as crianças que elas merecem ser?
Por via duma ideia de escola que não distingue os limites do direito a aprender dos limites do dever de as proteger do trabalho infantil, será mais trabalho e menos infância melhor futuro? E não se passa tudo isto num mundo que considera o trabalho infantil um atentado ao desenvolvimento das crianças e reprime e castiga quem com ele pretendia afastar crianças do seu direito à infância? Afinal, o que é que é legítimo desejar? É simples: menos escola, melhor escola e mais infância!
*Eduardo Sá é psicólogo clínico e psicanalista. Este texto foi publicado originalmente em eduardosa.com