A eutanásia é uma licença para matar. Diga-se o que se disser, importa não esquecer que a eutanásia é isto mesmo: uma autorização ‘legal’ para eliminar uma vida humana inocente. O pedido, ou o consentimento da vítima, bem como as melhores intenções do agente, não são susceptíveis de alterar a natureza ética do acto que, por ter por objecto principal a eliminação consciente e voluntária de um ser humano inocente é, necessariamente, um homicídio intencional. Uma mentira piedosa, se é que as há, não é por piedosa que não é mentira. Um furto, para dar esmola, não é menos furto por razão da sua caritativa intenção. Matar por compaixão é sempre, apenas e só, matar.

Os novos sofistas não gostam da verdade, que procuram evitar com capciosos eufemismos, que quase fazem parecer virtuoso um acto que, pela sua própria natureza, é necessariamente criminoso. Por isso, substituem a palavra eutanásia, que recorda as detestáveis práticas eugenistas nazis, por expressões ambíguas, como o alegado ‘direito a uma morte digna’. Seja suicídio ou morte assistida, seja até por vontade do próprio ou em situação de grande sofrimento, a verdade é que se trata sempre de um assassinato, porque se atenta contra uma vida humana inocente.

Em relação a esta questão, há um paradoxo recorrente: os defensores da eutanásia, na medida em que não a impõem a quem a não deseja, parecem ser, afinal, os defensores da liberdade, enquanto os que a ela se opõem, na medida em que a impedem também aos outros, na realidade estão a impor a todos a sua opção moral, desrespeitando a legítima liberdade de cada qual se determinar em relação ao fim da sua própria vida. Paradoxal conclusão: defender a eutanásia é defender a liberdade; opor-se à eutanásia é, em última análise, opor-se à liberdade.

Com efeito, quem defende a vida e não aceita a eutanásia em caso algum, está a impor, desse modo, na sociedade civil, a sua própria opinião. Não só está a evitar que lhe possa ser aplicada a eutanásia – o que seria razoável, na medida em que é essa a sua vontade – mas também está a proibir que a outros se lhes permita esse recurso, mesmo que o desejem livre e conscientemente. Pergunta-se: que direito tem um cidadão, seja ou não crente, para interferir na decisão de outros cidadãos sobre o fim das suas vidas?! É legítimo que alguém não queira que a sua morte seja artificialmente antecipada. Mas, um tal direito dá-lhe legitimidade para impedir que isso aconteça a outros cidadãos, se livre e conscientemente o quiserem?!

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Pelo contrário, quem defende a eutanásia, em caso algum exige que a mesma seja aplicada a quem não quer morrer antes de chegar a morte natural, pois seria apenas exequível, pelo menos em tese, para quem positivamente optasse por esse fim de vida. É verdade que, como já acontece em todos os poucos países que legalizaram a eutanásia, rapidamente se passa da morte a pedido à eutanásia involuntária, nomeadamente das crianças e deficientes. Mas, se tal não ocorresse, não é verdade que, por respeito pelo princípio da liberdade de cada qual em relação ao fim da sua própria vida, se devia respeitar a sua vontade, livre e consciente, de antecipar a morte, sobretudo em casos de doenças incuráveis, ou que causam um grande sofrimento?!

Em virtude deste paradoxo, dir-se-ia que a discussão não se estabelece entre os que são pela vida e os que são a favor da ‘boa morte’, mas entre os que são partidários da liberdade e os que, pelo contrário, querem impor, autoritariamente, a sua própria moral a toda a sociedade.

A solução deste paradoxo só pode ser encontrada fora do âmbito da autonomia da vontade. Ou seja, a liberdade não é um direito absoluto, mas uma justa autodeterminação, condicionada por alguns princípios éticos irrevogáveis. O limite da liberdade é o bem da própria pessoa, sobretudo a sua vida e dignidade. Quem faz o mal a alguém, nomeadamente suprimindo a sua vida, nunca faz o bem, mesmo que seja o próprio que o queira, ou nele consinta.

Se alguém se quisesse vender, ou escravizar, essa sua vontade seria de todo irrelevante e a sua compra e venda seria nula de pleno direito: a dignidade da pessoa humana não pode ser nunca posta em causa, nem mesmo com o consentimento de quem estaria disposto a dela prescindir. Se alguém se quisesse demitir da sua condição humana, também não poderia ser atendido, porque a sua natureza não é um bem disponível, a que possa renunciar, mesmo querendo.

O princípio da inviolabilidade da vida humana inocente prevalece até sobre o respeito devido à liberdade pessoal e, por isso, há que contrariar o propósito do suicida: dar-se-lhe-ão todos os meios necessários para que viva com dignidade, mas em caso algum se lhe dará a morte, mesmo que a peça. Na verdade, seria necessário questionar até que ponto pode ser juridicamente relevante o consentimento de alguém, que está tão perturbado que deseja a própria morte.

Quem faz o mal ao seu próximo, mesmo que seja a seu pedido, não faz bem: o bem da vida deve prevalecer sobre o da liberdade individual, porque a vida é condição da liberdade e uma liberdade que atenta contra a própria vida é contraditória e, portanto, anula-se a si mesma.

A legalização da eutanásia implicaria que o consentimento da vítima fosse relevante para efeitos da despenalização do homicídio, da violência doméstica, ou de outros crimes. Numa sociedade em que a autonomia da vontade pode ser invocada contra a vida humana, os direitos humanos deixam de fazer sentido, porque substituídos pela lei do mais forte, que é a lei da selva. E os primeiros a serem eliminados serão, inexoravelmente, os mais débeis: os doentes, os pobres, os velhos, os fracos, os desesperados.

Genocídio dos inúteis. Chamam-lhe eutanásia, talvez pela impunidade que o escárnio sobre outros tem, mas é disso que se trata: do extermínio, pelo aval de estado, por agente executor ao serviço deste, de pessoas a quem o próprio estado falha em providenciar meios para que reconheçam a dignidade em vida. Chamam-lhe ‘morte digna’, como porventura um guarda de campo de concentração também chamaria, naquele jeito jacobino de que a guilhotina purifica. No nosso tempo, pela guilhotina da dita misericórdia de livrar o mundo dos que só dão despesa, dos feios, dos paralíticos, dos malcheirosos, porém, o princípio é o mesmo. Hoje são doentes, amanhã, pela permanente redefinição de liberdade, poderão ser os que padecem da condição incurável de terem pele mais escura. Albinos, aborígenes, esquimós, ciganos. Muçulmanos ou católicos. Tanto faz qual é o ser a cessar de o ser: o estado julga o seu sofrimento e termina-o. E nós aplaudimos. Nunca foi estado eficiente para nada, mas desta é que é, desta é que vai ser infalível a aferir sofrimento e vontade. Nunca confiou nas pessoas para nada, mas desta é que vai ser, se diz que quer morrer, é garantido, não restam dúvidas, confie-se: tiro na nuca, guilhotina ou injecção letal. Injecção letal é melhor, não é preciso limpar nada no fim” (Vítor Cunha, Eles lá sabem o que é a morte digna, meu coronel, Observador, 10-2-20). – A citação é longa e, diga-se de passagem, muito feia, se não mesmo obscena. Mas a realidade da eutanásia é ainda pior.

  1. Gonçalo Portocarrero de Almada

NOTA. – A decisão do Papa Francisco, de não permitir a ordenação sacerdotal de homens casados, só surpreendeu quem pensava que o Papa ia ceder à campanha mediática a favor do fim do celibato sacerdotal. Quem conhece minimamente o pensamento de Francisco, sabe também que o actual Papa, fazendo suas palavras de São Paulo VI, disse, há pouco mais de um ano: “Preferiria dar a minha vida em vez de mudar a lei do celibato. Pessoalmente, penso que o celibato é um dom para a Igreja e não estou de acordo com que se permita que o celibato seja opcional” (Conferência de imprensa dada no avião de regresso a Roma, depois das Jornadas Mundiais da Juventude no Panamá, a 27 de Janeiro de 2019). Mais uma vez se provou que não há nenhuma ruptura, mas total sintonia entre Bento XVI e Francisco e que, ao contrário do que uma certa imprensa imagina, o Cardeal Robert Sarah não só não é crítico do Papa como é um dos seus mais fiéis, corajosos e esclarecidos colaboradores.