A velocidade vertiginosa do ciclo noticioso e o completo circo mediático em que a campanha eleitoral para as eleições presidenciais dos Estados Unidos se tornou fazem com que já poucos se lembrem da desastrosa prestação de Joe Biden no debate televisivo com Donald Trump a 27 de Junho. Dias antes, porém, quem folheasse as páginas da imprensa dita de referência ou ligasse a televisão para assistir a um qualquer programa de comentário político na grande maioria dos principais canais noticiosos teria certamente ficado com a impressão de que o presidente Biden estaria na plena posse das suas faculdades físicas e mentais. Nos dias que antecederam o fatídico debate, pouco interessava as suas múltiplas incongruências discursivas, a dependência absoluta do teleponto para comunicar com um mínimo olímpico de clareza, os vários sinais de fragilidade física, ou até mesmo alguns momentos de senilidade onde Biden parecia estar completamente perdido em eventos públicos, incluindo importantes cimeiras internacionais. Quem se atrevesse a questionar a acuidade mental do presidente, como o Wall Street Journal se atreveu a fazer a 4 de Junho, seria imediatamente alvo de campanhas concertadas de descredibilização pública ou, em alguns casos, silenciamento.

No entanto, eis que de um momento para o outro, a realidade encenada desabou como um castelo de cartas. Depois do debate tudo mudou. Por um lado, deixou de ser possível continuar a ocultar e desvalorizar as fragilidades intrínsecas do presidente. Após um curtíssimo período de negação onde ainda se tentou defender o indefensável, isto é, se tentou manter a ficção de que Joe Biden estava em condições para concorrer às eleições de Novembro, não demorou muito até que importantes membros do Partido Democrata e uma miríade de comentadores afetos ao mesmo começassem a colocar em causa a viabilidade política e eleitoral de Biden. Num ato de contorcionismo maquiavélico, aquilo que até há poucas horas havia sido tabu, rapidamente o deixou de ser. Por outro lado, a percepção de que a prestação desastrosa de Joe Biden no debate tinha deixado o caminho aberto para o regresso de Donald Trump à Casa Branca tornou evidente para os Democratas a necessidade imperativa de substituir Biden por outro candidato e fazer tábua rasa de tudo o que se tinha passado.

No espaço de poucas semanas, a nomenclatura do Partido Democrata, hoje uma espécie de partido-estado que capturou política e ideologicamente importantes instituições como a burocracia federal, universidades, comunicação social, principais fundações que gravitam em torno do poder em Washington e uma grande fatia de multinacionais americanas, orquestrou a substituição sumária de Joe Biden por Kamala Harris. Num processo diametralmente oposto ao significado do nome do Partido, a escolha de Kamala foi tudo menos democrática e transparente. O profundo alinhamento político e ideológico de grande parte da comunicação social com o Partido Democrata suprimiu qualquer tipo de escrutínio sério e sistemático ao processo que levou à humilhante renuncia de Joe Biden através de uma missiva publicada nas redes sociais a 21 de Julho e subsequente entronização de Kamala Harris.

Pelo caminho ficaram uma série de importantes questões por esclarecer. Entre elas destacaria a seguinte: se Joe Biden não está em condições para assumir a candidatura à presidência e o seu declínio é hoje oficialmente tido como evidente, então é da mais elementar importância esclarecer quem efetivamente governou o país durante a sua administração, sobretudo numa altura em que o Presidente está isolado e sem o mínimo de condições para exercer o cargo. Numa democracia saudável, os Democratas já teriam vindo a público prestar contas ao eleitorado ou, no limite, sido pressionados pela a imprensa a fazê-lo. Acontece que não só não foram realmente pressionados a fazê-lo como, num sinal de profundo desrespeito pelos eleitores e pelo próprio regime democrático, nenhum dos principais representantes do Partido Democrata parece ter achado que eles e o Partido tinham e têm obrigação de prestar contas.

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No entanto, há muito que os Estados Unidos deixaram de ser uma democracia saudável. Em parte porque Democratas e Republicanos deixaram de observar as mais elementares regras de convivência democrática, do debate político e a convicção de que o compromisso político é crucial para governar. Pior: nenhum dos dois partidos realmente acredita que a verdade sobre os problemas que os Estados Unidos enfrentam deve ser comunicada aos eleitores com clareza. Este problema, que não é de todo um exclusivo Americano, esvazia os Partidos, sobretudo as suas alas mais moderadas,  de qualquer legitimidade política e moral para poder implementar reformas sérias que permitam resolver problemas nas áreas que mais preocupam a população.

Paralelamente, a degradação das instituições políticas americanas tem sido acompanhada pela gradual erosão da credibilidade da imprensa que é hoje notoriamente menos objectiva, menos imparcial, mais emotiva e, em certos temas, como as alterações climáticas ou reportagens sobre Donald Trump, ativista. Só um jornalismo de causas pode explicar a vigorosa campanha de promoção mediática em torno de Kamala Harris por grande parte da imprensa Americana e internacional. Do nada, os eleitores são agora levados a crer que Kamala, para além das credenciais raciais e de género amplamente valorizadas pelos Democratas e respetiva base eleitoral, também dispõe de excelsas qualidades de carácter, intelecto, destreza discursiva e o temperamento ideológico necessário para exercer o cargo de presidente.

De um momento para o outro, deixou de ser relevante o facto de Kamala Harris ter sido uma vice-presidente profundamente impopular, várias vezes definida como incompetente e, no decorrer das eleições primárias do Partido Democrata entre 2019 e 2020, não ter conseguido vencer um único Estado ou sequer eleger um único delegado. Da mesma forma, pouco importam agora as suas declarações públicas durante a onda de vandalismo que varreu os Estados Unidos na sequência da morte de George Floyd em 2020 quando era membro do Senado. Numa altura em que a violência dos manifestantes tinha já atingido limites inaceitáveis com vários registos de incêndios por fogo posto, mortes, ferimentos de polícias e milhares de casos de roubo e pilhagem de propriedade privada, Kamala Harris apareceu na CBS a dizer que os manifestantes faziam parte de um movimento social importante e que “não iriam parar até ao dia da eleição em Novembro” desse mesmo ano.

Também não parece existir grande vontade e interesse em escrutinar as consequências práticas das políticas adotadas pela administração Biden onde, por inerência do cargo que ainda desempenha, Kamala tem, ou pelo menos deveria ter, sérias responsabilidades políticas. Como muitos se recordarão, Joe Biden propôs-se a governar sobre três pilares fundamentais: “lutar pela alma da nação”, “reconstruir a classe média”, e “unir um país profundamente polarizado”. Chegados à reta final destes quatro anos de presidência é claro que, apesar de tremendos no papel ou em qualquer teleponto, estes objectivos ficaram muito longe de ser alcançados. Pelo menos é justamente isso que a maioria dos Americanos pensa de acordo com os mais recentes estudos de opinião compilados pela Gallup. Depois de quase quatro anos a “lutar pela alma da nação”, constata-se que nunca os Americanos demonstraram ter tão pouca confiança nas principais instituições do seu país, incluindo as escolas públicas, os jornais e televisão, a burocracia federal, o Supremo Tribunal, o Congresso e a própria Presidência.

Outra área onde a grande maioria dos Americanos acha que a administração Biden falhou em toda a linha foi na política de imigração e proteção das fronteiras externas, sobretudo a sul com o México. Sobre este dossier da governação, Kamala Harris tem responsabilidades diretas pelos resultados desastrosos, uma vez que o Presidente Biden lhe entregou a liderança política do tema. E que resultados são esses? Entre Janeiro de 2021 e Janeiro de 2024 mais de 10 milhões de imigrantes ilegais entraram nos Estados Unidos, a grande maioria pela fronteira com o México. Para colocar a dimensão deste número em perspetiva, bastará dizer-se que em 2020 o número total de imigrantes ilegais a viver em solo americano se estimava em 10.2 milhões. Com Biden, esse número duplicou e, ao dia de hoje, se todos imigrantes ilegais vivessem num único Estado, ele seria o quarto mais populoso em linha com o número de habitantes do Estado de Nova Iorque.

Mas uma grande fatia do eleitorado não está apenas descontente com os efeitos corrosivos que a imigração descontrolada tem tido na segurança pública e coesão do tecido social do país. O descontentamento é igualmente visível em relação à economia. Durante o mandato de Biden, a inflação registou um crescimento acumulado de 20%, fenómeno que se tem vindo a traduzir numa erosão do valor do dólar, quebra do valor real dos salários e um aumento generalizado do custo de vida. Muitas famílias com rendimentos baixos assim como muitas outras que integram a classe média que Joe Biden se propôs a reconstruir têm sentido crescentes dificuldades em pagar por bens essenciais como alimentação, transporte e energia e em manter o pagamento das suas rendas ou crédito à habitação. Em média, uma família americana precisava de gastar mais de $11,434 por ano em Outubro de 2023 para manter um nível de vida comparável àquele que tinha tido em Janeiro de 2021. É verdade que o efeito das medidas políticas e financeiras tomadas a pretexto da pandemia terão tido um impacto importante nestes números. Contudo, é inegável que a expansão do papel do Estado na economia por intermédio da implementação de políticas como o Inflation Reduction Act, que em vez de criar condições para reduzir a inflação faz precisamente o contrário através do aumento do envidamento público e alocação de abundantes subsídios em sectores económicos, indústrias e empresas escolhidas pelo Estado, tem criado distorções graves na economia Americana.

Mas se estes são alguns dos resultados da administração Biden no plano doméstico, o que dizer da sua política externa? Infelizmente, o balanço é igualmente cinzento. O início da Presidência fica marcado pela retirada absolutamente desastrosa e humilhante do Afeganistão que deixou os Talibãs no poder, imediatamente mutilou os direitos das mulheres e deixou para trás milhares de milhões de dólares em equipamento militar para ser utilizado por inimigos declarados dos Estados Unidos e seus aliados. Certamente atento às imagens que iam chegando de Cabul, é bastante provável que a retirada caótica do Afeganistão tenha convencido Vladimir Putin de que o momento de fraqueza Americano oferecia uma excelente janela de oportunidade para avançar com a invasão da Ucrânia que acabaria por acontecer no início de 2022. Contra as expetativas iniciais, o regime de sanções imposto à Rússia não só não beliscou a resolução de Moscovo como mostrou que num mundo multipolar existem alternativas ao poder político, económico e financeiro de Washington. Para além da guerra na Ucrânia, o mandato de Biden fica igualmente marcado pela crescente volatilidade política e militar no Médio Oriente. Israel está em guerra com o Hamas, Gaza tornou-se uma terra de ninguém para a qual não existem soluções políticas exequíveis no curto e médio prazo, membros do grupo islamita Houthi no Iémen continuam a causar distúrbios graves no estreito de Bab al-Mandab com consequências danosas para o comércio internacional, e o Irão está muito mais agressivo na região. Perante este quadro, não é descabido inferir que a tentativa da Administração Biden, numa rutura com a estratégia seguida por Donald Trump, de reabilitar Teerão como interlocutor político e diplomático na região através do alívio das sanções económicas possa ter tido um papel importante no fomento de toda esta instabilidade.

O que pensará a China de tudo isto? Por um lado, que todos estes focos de tensão levam a uma dispersão dos recursos financeiros, militares e atenção política dos Estados Unidos. Visto de Pequim, os decisores políticos chineses estão hoje convencidos de que dispõem de maior latitude para aumentar a agressividade das suas ações económicas, políticas e militares no Mar do Sul da China e regiões que consideram ser da sua esfera de influência. Por outro, que os Estados Unidos continuam a acelerar o seu processo de declínio político, económico, moral e militar.

Por fim, e talvez mais importante para esta eleição: o que pensará Kamala Harris de tudo isto? Ninguém sabe. Em boa verdade, também é certo que, pelo menos até à data, ainda ninguém lhe perguntou. Porém, arrisco que se lhe perguntassem numa entrevista sem a ajuda do teleponto, Kamala não será capaz de responder com clareza e propriedade. Mas num mundo dominado pela imagem e o instantâneo, a substância conta muito pouco. É por isso que, em Novembro de 2024, os eleitores americanos regressarão às urnas para escolher o mal menor entre duas más opções políticas. Pena é que o nível de escrutínio a ambas opções não seja equivalente. A democracia, os americanos e todos nós teríamos muito a ganhar se o fosse.