Depois de um ano em que a actividade diplomática se viu, também ela, maioritariamente confinada a ecrãs de computador e reuniões por videoconferência, o regresso a um módico de normalidade em 2021 permitiu o retorno físico de “grandes eventos” de política internacional. Com eles, para o bem e para o mal, regressou também a grande retórica, que nunca como agora esteve tão pouco alicerçada na realidade. Muitas vezes interrogo-me se isto será um sintoma da rápida digitalização das nossas sociedades, um fenómeno que baralha as fronteiras entre a complexidade inerente ao mundo real e a infinidade de possibilidades que o mundo virtual tem para oferecer a um custo mínimo e de acordo com as nossas preferências individuais.

Assim, em Junho deste ano tivemos a Cimeira do G7, em Carbis Bay, no Reino Unido. Nela, os chefes de governo dos membros do grupo assinalaram a necessidade de se garantir uma distribuição mais equitativa das vacinas para a Covid-19 que tardavam em chegar aos países mais pobres do globo. O problema era sério, porque, de acordo com o comunicado da Cimeira, um acesso mais equitativo às vacinas era tido como condição fundamental para uma recuperação mais acelerada da economia mundial. Convirá acrescentar que à data da Cimeira os governos do G7 tinham garantido mais de um terço das doses de vacinas disponíveis no mercado, isto apesar de constituírem apenas 13% da população mundial.

Não obstante a preocupação dos membros do G7, o esquema multilateral COVAX para a aquisição e distribuição de vacinas, uma iniciativa liderada pela Organização Mundial de Saúde em parceria com outras entidades, continua muito aquém de cumprir as metas inicialmente traçadas para a distribuição de vacinas em países pobres. Eis um exemplo onde a grandiloquência e altruísmo dos discursos esbarra contra a realidade. No papel, a multilateralização do processo de compra e distribuição de vacinas parecia ser uma excelente ideia. Porém, num mundo de estados soberanos e recursos limitados, os governos têm como principal responsabilidade a defesa dos respectivos interesses nacionais que, muitas vezes, se sobrepõem ao idealismo e boa-fé que servem de sustento a organismos multilaterais e cooperação internacional. Como acabou por acontecer, apesar de as vacinas terem sido apresentadas como um bem público precioso, elas acabaram mesmo por ser instrumentalizadas como meios de influência diplomática por países como a China e os Estados Unidos.

Avançando no calendário, ao encontro de líderes do G7 seguiram-se os regressos da Cimeira do G20, desta feita em Roma, e a Conferência das Partes da ONU sobre Alterações Climáticas (COP26), em Glasgow. Os dois eventos geraram um enorme frenesim mediático, não tanto por causa dos resultados que produzirão, mas, suspeito, pelo facto de as alterações climáticas se terem convertido numa espécie de novo credo religioso no seio de alguns segmentos das sociedades Ocidentais. A mensagem da homilia sobre o perigo das alterações ou, como também já se vai ouvido, “crise climática” penetrou com relativa facilidade nas nossas sociedades prósperas, urbanas, pós-modernas e cada vez mais secularizadas. Nos dias que correm, a expiação dos nossos pecados e salvação das almas ou consciências morais parecem depender de um exercício público de cidadania através do qual o cidadão assume de forma inequívoca a sua preocupação em relação ao impacto da acção humana na saúde do planeta, ao mesmo tempo que profere um fervoroso apelo a que “se faça alguma coisa”. Na verdade, não parece importar o quê, nem como, nem a que custo. O que importa é mesmo fazer algo, caso contrário a humanidade continuará a sua irremediável caminhada rumo à extinção. Por estes dias, até dinossauros são convidados a discursar na ONU sobre o tema.

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Perante o quadro apocalíptico com que nos deparamos cada vez que ligamos a televisão, ironicamente semelhante àquele que nos pintavam durante os meses mais graves da pandemia, todo aquele que ouse questionar o conteúdo da homilia vigente e tente refletir sobre se a presente histeria colectiva em torno das alterações climáticas será a melhor opção para mitigar os seus efeitos é imediatamente perseguido pela Santa Inquisição dos nossos tempos. Fazendo uso das redes sociais e de uma comunicação social particularmente disposta a explorar emoções, é curioso notar que muitos dos membros que integram esse tribunal não parecem dispostos a abdicar do conforto material de que dispõem. Conforto que, sublinhe-se, só é possível graças à existência de economias de mercado; à utilização de combustíveis fósseis para a produção de energia – sendo relevante lembrar que em 2021 cerca de 84.3% da produção mundial de energia ainda provém do petróleo (33.1%), carvão (27%) e gás (24.3%) –; às matérias-primas obtidas por via das actividades de extracção mineira – fundamentais para as cadeias de produção de telemóveis, carros eléctricos, cabos de fibra óptica e painéis solares –; às emissões geradas por fábricas que produzem televisões e gadgets donde acedemos às redes sociais para protestar contra o aquecimento global –; e à actividade agro-pecuária, indispensável para o crescimento das economias mais pobres do proverbial terceiro mundo e, já agora, para os nossos estômagos.

Ironia à parte, este texto não pretende ignorar ou recusar o facto de que as alterações climáticas, de resto um fenómeno tão antigo quanto a existência do nosso planeta, representam um desafio tremendo para as nossas sociedades. Em boa verdade sempre representaram. Pelo contrário, o que aqui se pretende é fazer um convite à reflexão sobre a utilidade do medo e histerismo com que hoje se aborda o tema no espaço público e político. Medo e histerismos são tipicamente maus conselheiros no que diz respeito à seleção das melhores políticas públicas, sobretudo quando importa tomar decisões em relação a assuntos complexos. Será que não tirámos as devidas conclusões da forma como se politizou o debate científico na resposta à Covid-19 e os custos que essa politização comportou?

Neste contexto, pior que a irresponsabilidade da retórica apocalíptica dos activistas e da duplicidade de interesses de uma vasta indústria de consultores, think-tanks e afins, entretanto montada para influenciar todo o processo regulatório que trilhará o caminho para a “descarbonização” e “transições energéticas” das nossas economias, só mesmo a irresponsabilidade das declarações que vários líderes políticos fazem a propósito do tema. Com efeito, a politização da discussão científica e o tom alarmista com que se aborda o tema é tão preocupante quanto a vacuidade de discursos que prometem metas de descarbonização e limites para o aumento da temperatura que não só demonstram ser inatingíveis, como se trata de comprometimentos pelos quais os políticos de hoje não terão de prestar contas, independentemente do seus resultados.

No meio disto tudo, o que nos deveria preocupar é a infantilização do discurso político que se socorre de paupérrimas cabeças de cartaz como Greta Thunberg para comunicar sobre o tema. Pior ainda é a omissão dos custos que um hipotético plano de descarbonização ou transição energética necessariamente comportará. Importa sublinhar que esses custos não são apenas financeiros. Eles englobam um vasto número de domínios como questões de segurança nacional e independência energética ou questões relacionadas a própria legitimidade democrática, política e económica das políticas escolhidas. Sem querer ser demasiado exaustivo, creio que seria útil uma reflexão pública sobre os seguintes pontos:

1Em 2021, a resposta aos efeitos da pandemia levou a uma desaceleração muito significativa da economia mundial. O PIB global registou uma contracção de 3.5% que forçou a economia mundial a mergulhar na pior recessão desde o final da Segunda Guerra Mundial. Os fluxos de comércio e investimento encolheram, os governos viram-se obrigados a adoptar políticas fiscais e monetárias expansionistas de modo a injectar liquidez em economias artificialmente fechadas por decreto para conter a propagação do vírus. Os volumes de dívida pública aumentaram exponencialmente, o endividamento privado acompanhou esse crescimento e os presentes sinais de inflação começam a preocupar governos e bancos centrais. Acontece que, de acordo com a Agência Internacional de Energia, nunca se reduziram tanto as emissões de dióxido de carbono como em 2020. Estarão os governos europeus, norte americano e respectivos eleitorados dispostos a tolerar crescimentos económicos mais lentos com todas as consequências políticas, sociais e económicas que daí advirão em troca de uma redução significativa das emissões no curto e médio prazo?

2 Xi Jinping não esteve presente na Cimeira do G20, nem nas reuniões da COP26. Como é que se trata de um problema global da dimensão das alterações climáticas sem a colaboração activa do maior emissor de carbono do planeta? Numa altura em que a China se procura assumir como um modelo político e de desenvolvimento económico alternativo ao das principais democracias ocidentais e se encontra em competição aberta com os Estados Unidos, haverá condições para algum tipo de genuína e transparente cooperação?

3 Estarão os eleitores das democracias ocidentais dispostos a pagar a conta da transição energética por via do aumento de impostos? Nos Estados Unidos, as boas intenções ambientais já começaram a esbarrar na realidade imposta pela política doméstica. O Presidente Biden fez da descarbonização do sector da energia até 2035 e do alcance da neutralidade carbónica da economia até 2050 duas bandeiras políticas importantes. Porém, isso requer a aprovação de um plano de despesa enorme por parte do Congresso que Republicanos e alguns Democratas entendem ser irresponsável do ponto de vista fiscal. Joe Manchin, Senador Democrata da Virgínia Ocidental, um estado com uma forte indústria de carvão, continua a bloquear a aprovação do programa “Build Back Better”. O que acontecerá se os Democratas perderem o controlo sobre o Congresso, algo que é muito provável que aconteça no próximo ano?

Na União Europeia, a necessidade de se encontrar um equilíbrio nos interesses dos vários actores da vida política doméstica dos diferentes estados-membros certamente frustrará a velocidade de execução e aprovação de planos para as alterações climáticas. De que forma poderá o governo alemão contornar o limite constitucional ao aumento excessivo da despesa pública para financiar a transição energética da sua economia? Politicamente, de que forma lidará com o potencial impacto da transição no emprego no sector automóvel e noutras indústrias poluidoras?

4 De que forma conseguirá a União Europeia contornar a sua dependência energética de combustíveis fósseis importados de uma periferia geográfica complicada? Quais as implicações geopolíticas da transição energética e de que forma poderá ela comprometer o apelo francês para a criação de uma Europa independente do ponto de vista estratégico?

5 É importante reconhecer que esta não será a primeira transição energética da história. A revolução industrial abriu caminho à transição do uso da biomassa para a utilização do carvão, salvando a destruição de florestas, pelo menos na Europa e Estados Unidos. Este tipo de transições são processos longos, de direção incerta, dependentes das condições tecnológicas disponíveis no tempo e do acaso. Como Daniel Yergin explica, “demorou quase dois séculos até o carvão se tornar na principal fonte de energia do mundo. O petróleo, apesar de descoberto em 1859, só se tornou central para a economia mundial na década de 1960”. Do mesmo modo, foram precisos aproximadamente 50 anos para as energias solar e eólica se tornarem competitivas do ponto de vista financeiro e da produção elétrica. O mesmo se poderá dizer dos veículos eléctricos que demoraram mais de 100 anos até ganharem a expressão que têm hoje no mercado. Qual o custo que a compressão do tempo de desenvolvimento e maturação de novas tecnologias poderá ter? Terão os governos e agências governamentais capacidade para planear, definir e regular aquilo que poderá ser o futuro? A história é demasiado fértil em exemplos que nos dizem o contrário.

6 Por último, teremos nós noção na Europa de que a transição energética requer uma profunda transformação na configuração das cadeias de produção internacionais? Teremos nós noção de que a nova cadeia de valor para energias renováveis e veículos eléctricos já é dominada pela China? Pequim tem todo o interesse numa transição energética para reduzir a sua dependência do petróleo, um problema que é internamente visto como uma fraqueza estratégica. Não nos estaremos nós a esquecer de que a China é o maior mercado do mundo de carros eléctricos? E de que Pequim domina aproximadamente 70% das cadeias de valor e indústrias associadas à produção de painéis solares, baterias de lítio e mineração de metais raros? Num mundo com crescentes tensões geopolíticas, a avaliação de todas estas questões é imperiosa.

A insistência na construção de narrativas apocalípticas e irresponsáveis do ponto de vista político não só destruirá a credibilidade de instituições como o G7, o G20 e a Conferência das Partes da ONU, como não resolverá coisa nenhuma. Neste momento, ninguém tem respostas sobre como mitigar os efeitos das alterações climáticas, porque a complexidade do tema não o permite. Mas isso poderia ser melhorado através da condução de uma discussão mais serena e ponderada. Se optarmos pelo histerismo colectivo falharemos redondamente, porque tomaremos muito mais más decisões. Nem mesmo as moedinhas que os líderes do G20 atiraram para a Fonte de Trevi, em Roma, nos salvarão.