Na madrugada de segunda-feira, o Myanmar acordou em sobressalto com as notícias de que o exército, localmente conhecido por Tatmadaw, tinha avançado com a detenção das principais figuras civis do governo, incluindo Aung San Suu Kyi, conselheira de Estado e líder de facto do governo, e Win Myint, presidente formal e aliado político fundamental de Aung San Suu Kyi.

As detenções dos membros do governo e principais dirigentes da Liga Nacional pela Democracia (LND) tiveram lugar no dia em que o parlamento se preparava para a abertura solene da nova legislatura em Naypyidaw, a desoladora e altamente planificada capital administrativa do país, onde avenidas de dimensão megalómana despidas de automóveis e de qualquer alma são um contraste triste com a azáfama e vida que domina as ruas de Yangon, a antiga capital e centro económico do Myanmar.

Com o país em suspenso em relação ao futuro e os serviços de telecomunicações suprimidos para dificultar a organização de movimentos de resistência popular, aquilo que neste momento se procura perceber são as verdadeiras motivações por detrás desta manobra militar que, para além do governo central, também assumiu o controlo dos vários governos regionais.

Até ao momento, tendo em conta a informação oficial disponível, a comunicação social tem apontado o crescimento das tensões políticas entre os militares e a LND, por causa das eleições de 8 de Novembro de 2020, como a principal razão para o golpe de Estado. Recorde-se que as eleições, que a LND venceu por larguíssima margem, foram imediatamente contestadas pelas forças armadas e pelo Partido da Solidariedade e Desenvolvimento da União (PSDU), força política próxima da Tatmadaw. Num comunicado difundido esta semana pelos militares podia ler-se que a Tatmadaw “considerava o processo eleitoral de 8 de Novembro inaceitável por existirem mais de 10,5 milhões de casos de potencial fraude eleitoral, incluindo votos de eleitores inexistentes”.

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Desde antes das eleições que o principal alvo da contestação dos militares foi a Comissão Eleitoral da União (CEU), órgão responsável pela organização e supervisão das eleições nomeado pelo governo. Como fica evidente, o processo de nomeação dos membros da CEU cria um terreno fértil para o aparecimento de múltiplos conflitos de interesse. Para além do mais, e talvez este seja o ponto mais importante como adiante veremos, ao contrário das eleições de 2015, esta CEU tinha a característica particular de fugir ao controlo político dos militares. Trata-se, pois, de uma falha inaceitável para a oligarquia político-militar, que nunca concebeu a abertura política do regime como a total transferência de poder para a esfera civil.

Apesar de terem sido detetadas algumas irregularidades e falhas na organização das eleições, as opiniões dos observadores internacionais que acompanharam o desenrolar do ato eleitoral confluíram no sentido de que os resultados finais, que infligiram uma pesada derrota ao PSDU e outras forças partidárias próximas dos militares, representam de forma fidedigna a vontade do eleitorado.

É um facto que os militares e as forças políticas que lhes são próximas são profundamente impopulares. A isso não serão alheias as memórias e o legado de repressão política e miséria económica a que o regime militar submeteu os birmanos durante mais de cinco décadas. Durante esses longos anos, o único sinal de esperança de reforma e abertura política corporizou-se na resistência estóica de Aung San Suu Kyi, que lhe valeu a atribuição do Prémio Nobel da Paz em 1991, e de outros membros da LND, a maioria deles presos políticos. É esse capital político de resistência, a que se junta a descendência direta do General Aung San, herói nacional do processo de independência da Birmânia, luta pela democracia e ausência de alternativas partidárias credíveis de âmbito nacional, que contribuem para a popularidade arrebatadora de Aung San Suu Kyi e da LND.

Porém, se a popularidade da LND e de Aung San Suu Kyi lhes conferem um capital e influência política fundamentais, é importante não esquecer que o processo de transição política do Myanmar, de uma ditadura militar para uma forma híbrida de democracia eleitoral, é tutela dos militares e não da LND. Só esta visão do regime poderá justificar a tomada do poder pelas forças armadas na madrugada de segunda-feira da forma que ocorreu.

Neste contexto, importa sublinhar que a transição política do Myanmar foi cuidadosamente preparada pelos militares. A Constituição de 2008, que ofereceu substância legal a essa transição, foi desenhada com o propósito claro de permitir uma abertura política do regime sem a necessidade da transferência da totalidade do poder legislativo e executivo para a esfera civil. Um bom exemplo dos limites impostos a uma total transferência de poderes, é o artigo 109, que reserva, independentemente dos resultados eleitorais, 25% dos lugares parlamentares a representantes a nomear diretamente pelo chefe supremo das forças armadas. Acresce que os 110 mandatos a que correspondem esses 25% são suficientes para bloquear qualquer tentativa de revisão constitucional. Já o artigo 232 garante a presença dos militares em três ministérios fundamentais, a saber: o Ministério das Fronteiras, o Ministério da Defesa e, o Ministério do Interior. Quer isto dizer, que em todas as matérias relacionadas com defesa e soberania nacional, onde se incluem decisões sobre a repressão violenta da miríade de minorias étnicas, como os Rohingya, que fazem do Myanmar um verdadeiro mosaico étnico, o governo encontra-se refém do poder militar.

Consta que, entre quinta-feira e domingo da semana passada, a liderança da Tatmadaw e altos representantes do governo e da LND estiveram envolvidos em negociações intensas sobre possíveis caminhos para desanuviar as tensões políticas, incluindo a divulgação das listas eleitorais utilizadas no dia das eleições pela CEU e a possibilidade do presidente Win Myint convocar o Conselho de Defesa e Segurança Nacional. A recusa da LND em fazer quaisquer concessões aos militares terá esgotado, no entanto, a sua paciência.

Para dar um ar de constitucionalidade à tomada de poder na madrugada de segunda-feira, a Tatmadaw definiu as irregularidades do processo eleitoral de Novembro como um problema de “segurança nacional”, que coloca em causa a “soberania do Estado” e a “transparência do processo democrático”. Assim, a detenção de Aung San Suu Kyi e de Win Myint permitiram que o general Myint Swe, vice-presidente e quadro influente da Tatmadaw, ocupasse a presidência e, no âmbito do artigo 417 da Constituição, declarasse o estado de emergência e operasse a transferência do poder legislativo, executivo e judicial para o chefe supremo das forças armadas, o general Min Aung Hlaing, porventura uma das figuras mais poderosas do regime.

Para já, sabe-se que o estado de emergência durará um ano, período em que os militares prometeram a realização de novas eleições. É óbvio que ninguém esperará uma comissão eleitoral isenta. Porém, ela será isenta para aqueles que mantêm o controlo de facto e a tutela paternal do regime.

Tendo em conta a história pós-colonial do Myanmar, marcada por dois golpes de Estado em 1962 e 1988 que trouxeram pouco mais do que miséria económica e social, é compreensível que um povo que ainda carrega bem visíveis as cicatrizes de um longo período de ditadura espere o pior. Com efeito, o pior que pode acontecer é que o estado de emergência de um ano se prolongue indeterminadamente. Como as eleições de 8 de Novembro de 2020 demonstram, basta um pretexto e a perceção de que algumas instituições do Estado escapam ao controlo militar.

Assim, a lição preliminar que se pode retirar deste novo golpe de Estado é que talvez a LND tenha sido pouco cuidadosa, ou demasiado ambiciosa, na gestão dos equilíbrios de poder com a Tatmadaw. Ao que parece, os militares podem tolerar pesadas derrotas eleitorais, como em 2015, mas não parecem dispostos a tolerar um governo que se bate por uma maior independência do Estado e de instituições como a CEU, ou os tribunais da sua tutela e influência. Antes de tudo o mais, a ação da Tatmadaw serviu para mostrar quem realmente manda. Se este golpe de Estado representa um regresso ao passado, ninguém o poderá garantir. Porém, desde a abertura do regime até à chegada da LND ao governo, em 2015, a sombra do passado esteve sempre bem presente.