Os avanços da Obstetrícia moderna (cesarianas, partos hospitalares, cuidados neonatais) melhoraram drasticamente a sobrevivência materna e neonatal. Entre 1990 e 2017, a taxa de mortalidade materna diminuiu 44%. Já a mortalidade neonatal global passou de 5 milhões em 1990 para 2,4 milhões em 2019. Com esta evolução, também mudaram as expectativas. Se, antigamente, tudo o que se esperava era que a mãe e o bebé sobrevivessem, esse é agora um dado considerado adquirido. A nova expectativa do parto é que seja um dia com recordações positivas.
Como reverso da medalha, dispararam as intervenções durante o parto e começaram a surgir vários relatos de práticas abusivas. Sheila Kitzinger, uma ativista britânica, escreveu, em 1988: “Dar à luz na sociedade moderna tornou-se um ato institucionalizado de violência contra as mulheres.” Também a OMS se pronunciou e, em 1996, publicou um documento onde alerta sobre a transformação do parto normal e as intervenções desnecessárias. Por cá, a 28 junho de 2021, a Assembleia da República publicou uma Resolução (nº181/2021) que introduziu no léxico legislativo português palavras como “violência obstétrica”, “episiotomia” e “ponto do marido”. Anteriormente, já tinham sido publicadas outras leis (nº 15/2014, nº 110/2019) que sublinham a importância dos cuidados no parto e pós-parto. Portugal reforça assim – e bem! – esforços para promover um parto respeitado.
Reconheço a enorme importância deste processo e o quanto já se fez pela vida de mães, bebés e suas famílias. No entanto, há ainda muitas barreiras que têm sido difíceis de ultrapassar.
O problema assenta, acima de tudo, na falta de comunicação eficaz. Por exemplo, o termo “violência obstétrica” é pouco consensual e considerado ofensivo por muitos profissionais de saúde. E é fácil perceber porquê: a designação pressupõe que há intenção nas más práticas. Nas redes sociais, que têm assumido um papel central nesta discussão, propaga-se a ideia que qualquer grávida será, por princípio, maltratada. Só se tiver sorte ou se tiver os recursos para ser vigiada no Hospital A ou B, pelo Obstetra C ou D, acompanhada pela doula E ou F, escapa. Os médicos e enfermeiros aparecem retratados como carrascos, homens e mulheres sem alma cujo propósito é maltratar, cortar, magoar, ofender….
Este clima de antagonismo só traz desvantagens. Por um lado, as grávidas estão receosas, desconfiadas, ansiosas. Não duvido que, entre outras situações, este clima tenha contribuído para o aumento de partos em casa, que quase duplicou no ano passado, com grande risco materno e fetal. Por outro lado, com esta generalização, os profissionais de saúde sentem-se atacados, ofendidos e desmotivados. Para aqueles, e acredito que são a grande maioria, que vivem a sua profissão com dedicação e competência é difícil sentir que todos os anos de estudo e experiência são desvalorizados. Como se sentiria o piloto de avião se cada passageiro lhe entregasse um plano de voo onde refere que pretende “não ter turbulência”, “não aterrar de emergência, a não ser que seja mesmo preciso”, “chegar depressa” e, já agora, “vivo ao seu destino”?
Este é, obviamente, um tema muito sensível. Há duas perspetivas vincadas, mas não tinha que ser assim. Na minha opinião, urge saber distinguir as perspetivas. É verdade que existiram, e apesar dos progressos ainda existem, muitas situações de práticas abusivas. É preciso fomentar a informação (muita informação e de qualidade!) e tomadas de decisão verdadeiramente informadas. É necessário dar liberdade, ouvir preferências, diminuir procedimentos, reduzir os partos instrumentados e as cesarianas, e muito mais. Para isso, venha uma discussão informada dos planos de parto, atualização de protocolos, equipas multidisciplinares, apoio por doulas e tudo o mais que seja necessário e benéfico.
Mas também é preciso relembrar que a Obstetrícia é uma ciência médica. Como tal, envolve procedimentos médicos e tem que haver limites mínimos de entendimento entre aquilo que deixa toda a equipa confortável, incluindo os profissionais de saúde que são – à entrada no hospital – quem assume a responsabilidade pela vida daquela mãe e bebé. É com eles que podemos contar no caso de alguma complicação. São eles que investem anos na sua formação com o objetivo de fazer cada vez melhor o seu trabalho, pelo que me parece natural que também sejam considerados neste processo. Os cuidados médicos e os vários procedimentos que existem permitem salvar vidas. Não adiantam posições dogmáticas, na Medicina não há “sempres” nem “nuncas”. E, por isso, não há procedimentos que devam ser sempre realizados, tal como não há os que nunca devem ser realizados.
Fazendo parte de uma nova geração da Obstetrícia tudo isto me deixa genuinamente triste. Triste por saber que há tantas mulheres que sofreram naquele que deveria ser um dos dias mais felizes da sua vida.
Tenho a sorte de trabalhar num hospital com excelentes profissionais e muito focado na autonomia, bem-estar e satisfação de mães e bebés. Mas olhando para o panorama nacional, público ou privado, não nego a existência de histórias devastadoras, assimetria de cuidados e muito a melhorar na saúde materna. Acredito, no entanto, que, por cada mau profissional, há muitos mais excelentes profissionais. Por cada história infeliz, há muitas mais felizes.
Uma coisa é certa: a solução não passa por diabolizar os cuidados de saúde que existem. Como podemos então continuar a melhorar? Acredito que as soluções passam por:
- Continuar a divulgar entre os profissionais de saúde a importância da atualização das práticas e limitação de procedimentos desnecessários;
- Investir na educação para a saúde das grávidas por fontes fidedignas. A desinformação é o maior inimigo da saúde moderna;
- Conhecer melhor a realidade do país de forma a individualizar os pontos de melhoria e sancionar as práticas abusivas;
- Alocar um maior orçamento no reforço dos cuidados de saúde maternos. As alterações legislativas podem ser louváveis, mas são insuficientes. Maternidades e salas de parto desatualizadas, equipamentos antigos e, muito importante, recursos humanos subdimensionados jamais conseguirão corresponder ao que as nossas grávidas desejam e merecem.
Já percorremos um longo caminho, mas há muito ainda por fazer. Neste trajeto, não deixemos de recordar que a grande maioria dos médicos, enfermeiros e auxiliares de ação médica estão igualmente empenhados nesta luta. Não deixemos de reconhecer que há excelência nos cuidados de saúde obstétricos em Portugal e que, no fim, cuidadores e grávidas querem o mesmo: mães e bebés saudáveis e felizes. Vamos a isso!
Catarina Reis de Carvalho tem 32 anos e é médica de Ginecologia-Obstetrícia no Hospital de Santa Maria – Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte. Paralelamente, é assistente convidada na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. Pertence ainda à Ordem dos Médicos e ao Conselho Nacional de Médicos Internos. Juntou-se aos Global Shapers Lisbon em 2017.
O Observador associa-se aos Global Shapers Lisbon, comunidade do Fórum Económico Mundial para, semanalmente, discutir um tópico relevante da política nacional visto pelos olhos de um destes jovens líderes da sociedade portuguesa. O artigo representa, portanto, a opinião pessoal do autor enquadrada nos valores da Comunidade dos Global Shapers, ainda que de forma não vinculativa.