O genro de Jerónimo de Sousa, talhante no desemprego, arranja subitamente contratos de dezenas de milhares de euros por ajuste directo com uma câmara municipal controlada pelo partido do sogro. Enorme coincidência? Talvez. Mas bastará aludir à iniciativa privada e ao funcionamento do mercado – coisas que os comunistas, quando não estão em causa genros do secretário-geral, normalmente deploram – para prevenir todas as perguntas?

Houve quem naturalmente pegasse no caso pela ponta da hipocrisia, como na famosa história do vereador do Bloco de Esquerda em Lisboa. Há certamente matéria para isso. Mas a reflexão mais importante pode não ter a ver com a “superioridade moral dos comunistas”, mas com a própria natureza do PCP e do BE. Há muito tempo que o jornalismo nacional os trata como “partidos de protesto”, à parte dos outros partidos parlamentares. É assim que eles próprios gostam de se ver: a voz e a organização desinteressada dos que, na sociedade portuguesa, se sentem humilhados e ofendidos. Ora, estes casos, independentemente de quaisquer  questões de moralidade ou regularidade de procedimentos, sugerem outra coisa.

Antes de serem “partidos de protesto”, o PCP e o BE são “partidos do Estado”, e, por isso mesmo, percebidos como um meio através do qual, até muito legalmente, um técnico de eficiência energética pode aspirar às mais valias de um negócio de milhões ou um talhante desempregado a contratos de milhares de euros. Os partidos precisam do Estado, que os subsidia e que os partidos usam para proporcionar carreiras e também para criar a expectativa das mais variadas oportunidades. Sem os recursos do Estado, haveria “máquina”, isto é, activistas profissionais disponíveis para enquadrar e mobilizar simpatizantes e eleitores?

Para o PCP, para a extrema-esquerda e para os outros partidos, a história começou verdadeiramente em 1974, no Estado. O MFA distribuiu-lhes os mais variados recursos públicos (sedes, cargos administrativos e políticos, etc.) e deixou que a legislação se erguesse como uma barricada para os defender contra concorrentes. Foram partidos construídos de cima para baixo. Atraíram gente devido aos líderes e às ideias, mas também por causa do poder de que pareciam dispor: nos ministérios, nos municípios ou, nos anos da revolução, também nos quartéis, como os antecessores do BE. Para quase todos os partidos parlamentares, foi a sua passagem pelo governo ou pelos seus arredores que multiplicou e consolidou o número de filiados. Não é por acaso que temos o sistema partidário mais estável da Europa: é mais um efeito do domínio do Estado sobre a sociedade civil em Portugal.

Percebemos assim muitas coisas. Por exemplo, a pressa com que os sócios da geringonça, em 2015, esqueceram rivalidades, anularam excomunhões mútuas e se dispuseram a votar os orçamentos carimbados por Bruxelas: valia tudo para recuperarem ou adquirirem influência no Estado. Da mesma maneira, a estratégia actual do PSD, com Rui Rio, de colagem ao governo socialista: é óbvio que a tese é a de que, para estancar a hemorragia autárquica, só o elixir do poder serve.

Os partidos que há 44 anos monopolizam a representação política em Portugal vivem do pão do Estado, e não sabem nem pretendem viver de outra maneira. Durarão enquanto houver contratos para genros e negócios para vereadores. Logo que perderam isso, os seus antecessores, na história partidária portuguesa, não duraram nada. Em Portugal, o fim de um regime foi sempre o fim dos seus partidos, incapazes de sobreviver à perda do oxigénio do orçamento. Nada sugere que desta vez seja diferente.

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