O “plano maquiavélico” de José Milhazes em impedir a realização da Festa do Avante falhou redondamente, dizem os comunistas e seus simpatizantes ao chegarem à Quinta da Atalaia.

Teriam razão se existisse tal plano, mas devo informar que se ele foi imaginado, não foi por mim, pois uma enorme distância separa uma opinião pessoal pronunciada, de mais um episódio de uma qualquer teoria da conspiração.

Eu jamais imaginaria que a minha opinião, manifestada num comentário televisivo na SIC-Notícias, sobre a participação dos artistas portugueses e estrangeiros na Festa do Avante provocasse um tão grande número de discussões e, depois, de insultos pessoais.

Primeiro, eu nunca pedi ou exigi (quem sou eu para poder tomar essas decisões!) que a Festa do Avante fosse cancelada ou proibida, mas apelei aos cantores que considerassem as suas decisões face à iniciativa de um partido que tomou posições dúbias quanto à invasão da Ucrânia pelas tropas russas e apoia regimes políticos ditatoriais hediondos. Fica a sugestão de leitura da crónica de Gustavo Carona no jornal Público, quanto à única posição possível face à guerra na Ucrânia.

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Quem falou em cancelamento?

As primeiras reacções vieram de alguns dos cantores e músicos participantes que reafirmaram a sua vontade de participar no evento. Não as vou recordar, pois são do conhecimento público, mas deixo aqui o exemplo de Vitorino Salomé apenas para recordar a “superioridade intelectual” da “esquerda”:  “Quando aquele senhor de que não digo o nome, para a língua não se me dobrar, levantou a polémica, não lhe atribuí qualquer importância e continuo a pensar da mesma forma”, disse o músico, em declarações ao jornal Público. E acrescenta “não sendo militante do Partido Comunista — nem de nenhum outro —, sou de esquerda”.

Senhor cantor, eu também, já não sendo militante do Partido Comunista – nem de nenhum outro -, sou de esquerda, se ser de esquerda significa defender a justiça social, a igualdade de oportunidades, a democracia.

Não vou citar alguns comentários feitos às minhas declarações nas redes sociais, maioritariamente vindos de pessoas com perfis falsos ou anónimos, para não ferir os olhos e ouvidos dos leitores, mas gostaria de me debruçar sobre algumas análises que mostram que, em Portugal, a falta de argumentos é, frequentemente, substituída por insultos ou por pura ignorância.

Um tal Diogo Vaz Pinto escreve no jornal Sol:

“A receita para pôr em marcha a escandaleira este ano voltou a ser a sopa da pedra. Deitou-se fora a dos dois anos precedentes, e veio a calhar a da invasão da Ucrânia pela Rússia, tendo o PCP sido a única formação política que se absteve de condenar em termos claros aquela violação intolerável da soberania do povo ucraniano. 

E, então, José Milhazes, promovido a comentador residente na SIC-Notícias por virtude dos tantos anos que viveu como correspondente na URSS, e tendo nesta crise uma oportunidade para fazer soar o seu canto de cisne de forma estridente, ele que também só se apercebeu da natureza daquele regime quando este desmoronava, mostrou-se muito espantado por existirem artistas dispostos a atuar nos palcos de um evento que, como fez questão de vincar, é político. 

Trazia a coisa ensaiada, e mostrou até o cartaz do evento, sugerindo que aqueles artistas não deveriam aceitar tomar parte no evento, apelando assim ao regime de cancelamento tendo por base as posições que o PCP tem assumido relativamente à invasão da Ucrânia”. 

Olhando para ao que parece ser a inveja deste jornalista face ao facto de eu ter sido promovido a “comentador-residente da SIC-Notícias”, devo revelar-lhe um segredo: eu “propus” à direcção da SIC que reservasse um espaço no edifício em Paço de Arcos para a criação de um pequeno hotel para “comentadores-residentes”. Assim não terei a andar a correr de um lado para o outro…

E quando e onde eu apelei ao “regime de cancelamento” da Festa do Avante?

É verdade que, em resposta a pessoas que me acusam de estar “a ficar milionário com a guerra, com os livros, etc.”, disse, num encontro com leitores em Tomar, que estava “a ganhar dinheiro para comprar a Quinta da Atalaia e, dessa forma, acabar com a Festa do Avante”.

Os leitores compreenderam bem o humor, mas alguns levaram a sério, como se eu recebesse os milhões de dólares que o PCP recebia da União Soviética e dos “restantes países socialistas”! Você deve estar entre os que acreditam que o património do PCP vem de quotas e donativos.

O escriva continua a dar azo à sua criatividade rica: “Vitorino Salomé foi outro dos artistas a reagir à polémica cozinhada por José Milhazes a partir da sua tribuna televisiva, onde vai sendo preciso usar um palavrão ou criar alguma outra manobra que sirva para apimentar uma espécie de telenovela diária centrada nos avanços e recuos da guerra na Ucrânia, perdurando há meses e que, mais tarde ou mais cedo, já não exercerá o menor fascínio junto do público”.

De jornalista para jornalista, devo dizer-lhe que está mal informado e o seu discurso tresanda novamente a inveja e diria mesmo a falta de verdade quando escreve que eu preciso de “usar um palavrão ou criar alguma outra manobra que sirva para apimentar uma espécie de telenovela diária centrada nos avanços e recuos da guerra na Ucrânia”.

Primeiro, eu não usei, mas traduzi uma palavra, pois o jornalismo deve transmitir a realidade objectiva. Milhares de jovens, num concerto que foi uma das maiores manifestações antiguerra na Rússia, gritavam: “A guerra que vá para o c……!” e como deveria traduzir eu? Talvez “pilinha”, “pénis”?

Segundo, eu sou jornalista desde 8 de Agosto de 1989 e o palavrão foi traduzido em meados de 2022. Por isso, não se preocupe com o meu futuro, quando “já não exercerá o menor fascínio junto do público”.  Quando não me quiserem ouvir, arranjo outra coisa que fazer.

Daniel Oliveira publica no Expresso uma crónica com o título sugestivo “O cerco à Festa do “Avante” e ao PCP”.

E, imaginem, escreve ele: “ironicamente, a cruzada foi lançada há uns meses por José Milhazes, que, como militante do PCP, viveu na URSS, tendo descoberto a natureza do regime quando ele desmoronou. Por experiência própria sei que as pessoas mudam de opinião, mas nunca lidarei bem com o moralismo agressivo dos convertidos”.

Pois é, Daniel, mudei de ideias, mas dá exemplos de “moralismo agressivo dos convertidos”. Onde estão? Não posso criticar o PCP?

Escreves tu que “a posição dos comunistas sobre a Ucrânia nem sequer é um bom argumento para este paralelo. Qualquer pessoa informada sabe que o PCP não apoia o regime de Putin. É verdade que, por mais que diga que não apoia a invasão, não há um documento oficial ou uma declaração do secretário-geral – que vinculam o partido – que reconheça a invasão”.

Basta ler pacientemente o “Avante!” e ver o que escrevem pessoas influentes dentro do PCP para ver que isso não é verdade, a não ser que sejas um fiel apoiante da  burocracia e só acredites em comunicados oficiais.

Há muito que o PCP tem sido uma das correias de transmissão da propaganda de Putin em Portugal. Aqui fica um exemplo: no dia em que Volodymir Zelensky discursou na Assembleia da República, Paula Santos, líder parlamentar do PCP, justificou a ausência dos comunistas dizendo que “esta é uma sessão concebida para dar palco à instigação da escalada da guerra”.  E mais acrescentou: não alinhar “com a participação de alguém que personifica poder xenófobo e belicista”.

Será preciso publicar mais alguma coisa para compreender a verdadeira posição do PCP?

Tal como Daniel Oliveira, não compreendo as críticas que foram feitas ao PCP por não ter elogiado Mikhail Gorbatchov. Isso era mais do que expectável. Mas os comunistas podiam ter ficado calados. É muito fácil criticar líderes políticos que já estão afastados do poder e não podem enviar “ajuda internacionalista” aos partidos irmãos. Gostaria de ver os dirigentes comunistas portugueses falarem assim quando Gorbatchov dirigia o Partido Comunista da União Soviética e a própria URSS, quando eles recebiam “apoio financeiro para a actividade revolucionária”. Chamavam os nomes mais horríveis ao último dirigente soviético dentro das células do PCP à porta fechada, mas publicamente aplaudiam ou ficavam calados.

E já que decidiste falar de Gorbatchov, gostaria de precisar algumas impressões e mentiras que se difundem sobre o último líder soviético. Onde foste buscar essa tese de Gorbatchov “ter passado a vida a apoiar uma ditadura, trepar ao poder à boleia dessa ditadura e destruí-la por dentro para merecer elogio”? Ela é completamente falsa, pois, tal como o Daniel Oliveira, Gorbatchov tinha direito a mudar de ideias. Ou pensas como aqueles que afirmam que o derrube do comunismo era o seu sonho de criança?

Quanto ao legado, nos anos 90, ele já não exercia funções de Estado. É verdade que Gorbatchov falhou seriamente na realização das reformas económicas, sociais e políticas, pois pegou numa superpotência com pés de barro e irreformável no quadro de um sistema extremamente centralizado, burocrático, mas é injusto culpá-lo das políticas realizadas por Boris Ieltsin ou pelo actual ditador russo.

Escreve Daniel Oliveira que “o único legado de Gorbachev é o fim da URSS ou de qualquer coisa que lhe pudesse suceder”. Não te esqueceste de nada? E a libertação dos povos da “zona de influência soviética”?

E no campo do legado democrático para o futuro, também deixou muito: acabou com o sistema de partido único na URSS, não fechou as portas à liberdade de expressão, libertou os presos políticos, abriu a União Soviética ao mundo, pôs fim à guerra no Afeganistão, contribuiu para o fim de guerras civis em Angola, Moçambique, etc.

Claro que Gorbatchov cometeu erros, alguns deles tremendos, mas olhemos para as dimensões do país que governou e os obstáculos que se colocavam.

Voltando à “Festa do Avante”, apenas me resta dizer: vai quem quer e faz o que quer. É sinal de que ainda temos possibilidade de escolha.