1 A expressão polticamente correcto (poc), independentemente da sua origem, que veremos já qual foi, consiste no contrário do livre espírito crítico. Não tem um conteúdo definido pois serve apenas uma função que consiste no bloquear do raciocínio ao serviço de uma ortodoxia. Trata-se de uma espécie de carapuça que se envia na cabeça dos incautos para os impedir de pensar.

A expressão poc foi muito vulgarizada nos EUA na década de sessenta do passado século, mas tem uma origem mais antiga cujo objectivo foi sempre o mesmo: valorizar as posições ideológicas e culturais favoráveis ao comunismo internacional. O poc dependia do alinhamento com o comunismo internacional. Mas o seu conteúdo mudou muito. Foi uma coisa e depois outra consoante os diversos congressos da internacional comunista (comintern); em 1928 e depois do seu VI congresso era politicamente correcto (poc) ser contra a social-democracia, acusada de «social-fascista» porque o que estava em moda era a estratégia radical da classe contra classe, e em 1935 depois do VII congresso, era o contrário, porque assim o exigia a nova estratégia da «frente popular» com os sociais-democratas face à ameaça da extrema-direita alemã que acabara de ganhar as eleições em 1932.

Já em 1939 o poc passou até a ser o apoio à Alemanha nazi depois do pacto de não agressão de Ribbentrop-Molotov. Bem o sabia G. Marchais, secretário do partido comunista francês até 1994, que andou naquela altura a entoar louvores à Alemanha, e bem o sabia Cunhal, já dirigente do partido comunista português, que num artigo de 1940 para o jornal O Diabo (que nessa altura era bem diferente do que é hoje) intitulado «nem Maginot nem Siegfried» defendia uma política de neutralidade no conflito mundial em curso, com todo o cuidado para não hostilizar os então «amigos» nazis. De um modo geral, qualquer posição que contrariasse o marxismo oficial, tal como interpretado pela III internacional comunista, de acordo com os interesses de Moscovo, era politicamente incorrecta. A III internacional estabeleceu, aliás, que o partido comunista da URSS era o farol mundial do comunismo, servindo os partidos nacionais apenas de divulgadores das suas posições e apoiantes dos seus interesses à escala mundial. Poc era ser atento, venerando e obrigado aos interesses do partido comunista da URSS, e os seus instrumentos foram quase sempre os chamados «idiotas úteis», na expressão do próprio Estaline, ou seja, os intelectuais penhorados que circulavam em torno dos partidos comunistas europeus.

O poc tinha tal influência na cabeça dos intelectuais que mesmo personalidades a quem tanto devemos como Mário Soares não acreditava em 1949, então ainda membro do partido comunista português, que Kravchenko, o primeiro dissidente soviético que denunciou o terror estalinista e os campos de concentração, falasse verdade, e afirmava que era um agente da CIA e que, ainda em 1950 numa intervenção na Voz do Operário afirmava, a propósito da adesão do nosso país à NATO, que esta era uma organização belicista e que a paz e a democracia estavam do lado do bloco soviético. Poc era justificar as atrocidades do regime comunista pelo cerco capitalista. Outro conhecido antissalazarista, Piteira Santos, afirmava em 1956 a propósito da invasão soviética da Hungria que o democrata Imre Nagy era agente da CIA, e que o levantamento popular contra o comunismo foi financiado e armado pela Cruz Vermelha. F. Furet nas suas memórias sobre o partido comunista francês descreve muito bem esta traumática realidade do servilismo dos intelectuais face ao comunismo internacional. Eu próprio conheci vários, até académicos, que a troco de férias pagas na Crimeia faziam tudo, até justificar o fuzilamento dos mercenários britânicos apanhados em Angola pelo MPLA em 1975. Protestar contra tal atrocidade era politicamente incorrecto, como o foi alertar contra o fuzilamento em Luanda da comunista Cita Vales, seu marido e outros pelo mesmo MPLA por ocasião da «revolta activa» de uma facção daquele partido. Foi por causa disto que Zita Seabra saiu do partido comunista. É ela própria que o diz. Não foi poc. Poc será hoje apoiar Maduro, esse grande democrata e humanista.

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A partir da década de sessenta do passado século o poc teve grande divulgação nas melhores universidades americanas. O tom era agora outro e diversos os fundamentos. O poc já não era o seguidismo dos interesses do bloco soviético, mas sim a denúncia dos malefícios da democracias liberais ocidentais, principalmente da norte-americana. Alinhava agora com as posições de Marcuse e outros exilados da Alemanha nazi que foram para o EUA pregar as teses da «escola de Frankfurt» apostada na crítica cultural e ética do capitalismo, culpando-o pela alegada marginalização de franjas minoritárias da sociedade e por novas formas de alienação. Politicamente incorrecto seria alinhar com as democracias liberais europeias e fora da Europa. A vanguarda eram agora os estudantes que vinham substituir um cada vez mais acomodatício e aburguesado proletariado industrial. Poc era denunciar o sofrimento dos estudantes, obrigados e decorar uma cultura consumista e competitiva, dos emigrantes, dos presos, dos marginais, dos alienados, dos excluídos e dos inadaptados, vítimas fáceis da exploração. Passou-se da consciência de classe do proletariado, que nos EUA nunca existiu, para uma contra-cultura freak e libertária. À boleia foram muito intelectuais oportunistas, muito embora alguns com manifesto talento. Os seus apoiantes de então estão hoje reformados e geralmente bem na vida em lares de luxo para a terceira idade junto ao mar, depois de passarem pelas administrações de boas empresas. O poc está em crise nos EUA, como bem demonstrou a eleição de Trump,  que fez da ridicularização do poc a sua bandeira.

2 Naturalmente que o objectivo de limitar o pensamento através de uma ortodoxia rígida funciona à esquerda e à direita. Sou do tempo em que as limitações ao espírito crítico se louvavam numa ideologia nacionalista e patriótica justificativa das mais inconcebíveis opções políticas como a continuidade da presença portuguesa em África em nome de uma pretensa e ridícula identidade nacional que se estenderia a vários continentes. O termo poc não se usava, mas o objectivo era o mesmo. Ortodoxo e indiscutível era difundir as teses da natureza intercontinental do nosso país, que seria «o mesmo do Minho a Timor», ajudada por uma história panegírica, da religião católica, sobretudo da pré-conciliar, da família patriarcal e da autoridade com as suas correspondentes qualidades da virtude, da moral, da disciplina social e do prestígio, como no célebre discurso de Salazar em Braga em 1936 nos dez anos da «revolução nacional». Dizia um conhecido ministro da educação de Salazar: «Portugal é um país para todos, cada um no seu lugar». O discurso do cardeal Cerejeira na cerimónia oficial da inauguração do monumento ao Cristo-Rei, em 1959, e que o arquivo da RTP, possui sintetiza na perfeição o que era o «estado novo». A ortodoxia em vigor queria excluir e não integrar, desmerecer sem tentar perceber o ponto de vista contrário, dogmatizar em vez de ponderar.

3 O poc foi, é e será sempre uma atitude de exclusão. Incorrecto é o diferente, e a correcção resulta da adesão a um credo como nas juventudes hitlerianas ou nos partidos comunistas. A «correcção» é um corolário de uma atitude gregária que reúne os homens desde a idade da pedra. A antropologia tem uma palavra muito importante a dizer nesta matéria. É por isso que é incompatível com as luzes filosóficas. Será sempre o contrário da atitude crítica ou seja, do inventário do pouco que as ideias feitas nos podem transmitir. A lógica dos pontos de partida ortodoxos exige que qualquer desenvolvimento a eles se reconduza. A esquerda comunista sabe disso e é por essa razão que aposta na formatação por baixo das consciências, que é como quem diz, na sua simplificação. Fornece-nos um conjunto de pressupostos conceituais e a partir daí tudo se esclarece. Qualquer eventual dúvida se resolve invocando a certeza do ponto de partida; a final a interrogação não fazia sentido.

As ortodoxias fascistas e o marxismo são o pântano da inteligência. Entre a unidade nacional e a luta de classes, entre a raça abençoada e o proletariado salvífico, entre o maléfico judeu e o malandro capitalista, venha o diabo e escolha, sempre à custa da nossa assim tão maltratada inteligência.

4 O que é hoje o poc no nosso país? As coisas são mais difusas do que outrora. Já não existe a batuta do PCUS a determinar o tom em que os intelectuais de serviço devem cantar. E a quase desaparecida classe operária portuguesa não parece ter grande interesse em entoar a Internacional. Mas sem o poc a esquerda cultural portuguesa não vive. Está neste aspecto quarenta anos atrasada relativamente ao que se verificou nos outros países da Europa. Já me referi ao assunto; sem partido operário e sem apoio internacional, a esquerda marxista no nosso país vive do poc. Em que consiste agora ele? É muito fácil de entender. Consiste num conjunto de banalidades sobre os mais diversos assuntos que consolidam um pensamento único e totalitário apostado em exorcizar tudo quanto seja desviante, ou seja, tudo quanto seja alheio à nova ortodoxia. Como já não existem narrativas globais como o comunismo e a tomada do poder pela classe operária, e já ninguém acredita na bondade das nacionalizações, da reforma agrária e do controlo operário, e a visão da chita vendida a metro nos armazéns do Estado e a preços tabelados já não desperta o entusiasmo de outrora, é indispensável, à falta de melhor, atrair agora certas minorias e até os marginais e quejandos, ou seja, aquilo a que Marx chamava desdenhosamente o lumpenproletariat por não ter consciência de classe nem moral revolucionária. A esquerda marxista portuguesa passou do proletariado que lhe liga cada vez menos para o lumpenproletariado. É o canto do cisne. Perante a redução da sua tradicional base social de apoio o que lhe resta? O poc.

Para tanto há que preparar os cidadãos para este desconchavo. A estratégia é infantilizá-los e eliminar-lhes o perigoso hábito de pensar. As coisas começam pelo ensino, palco por excelência do poc. As crianças passam a pertencer ao Estado em vez de às famílias, o ensino visa destruir o passado e criar a partir do nada um futuro obviamente risonho, as cadeiras humanísticas estão desvalorizadas, a história quase que desapareceu, e a filosofia é um relambório desconexo de enormidades, estimula-se a denúncia, as desigualdades decorrentes do mérito são exorcizadas e mal vistas, o individualismo é ferozmente contrariado, as notas são inflacionadas para garantir o acesso aos graus superiores de ensino, o ensino técnico-profissional é encerrado, a disciplina foi abolida, a autoridade dos professores acabou, e a sexualidade é condicionada pela igualdade de género. O modelo é esse bom selvagem que era o Emílio de Rousseau, cheio de qualidades naturais, ignorante quanto baste, avesso à aprendizagem e rebelde a todo o tipo de disciplina. O adolescente passa a ser um sonâmbulo embrutecido, assexuado, irresponsável, sem hábitos de trabalho e de pensamento e epicurista. A culpa não é dele; é do poc que os professores lhe impingiram em nome de um ensino não elitista, fácil, inclusivo e igualitário, à medida de sucessivas experiências cujas cobaias são obviamente os alunos.

Formatadas as crianças, passemos agora aos adultos. Estes querem-se infantilizados, simplórios, incapazes de crítica, dóceis, dúcteis e pacíficos, prontos para absorver as patranhas que lhes contam e deslumbrados com as realizações da maioria. O que se lhes exige é que paguem impostos, taxas, multas e que se calem. O objectivo é pô-los a andar de trotinete, todos vestidos e (des) penteados da mesma maneira, mochila às costas, corredores de maratona, vegetarianos, especados em frente ao computador ou agarrados ao smartphone ou à televisão imbecilizada e partidária e quanto mais tó-tós melhor. Como já não convence os operários com promessas vãs, a esquerda portuguesa aposta na formatação por baixo dos cidadãos. O «admirável mundo novo» de A. Huxley é mais do que nunca actual.

A pior esquerda nacional, que infelizmente é a maioria, só absorveu do Maio de 68 o pior. Não sabe quem foi Daniel Cohn-Bendit, nem sabe quem foi o imortal Guy Debord, e de Raoul Vaneigem ou de Gianfranco Sanguinetti nunca ouviu falar. A esquerda nacional, como não podia deixar de ser, só conheceu o refugo e a vulgata maoísta. Mas bastou-lhe, como era de esperar. Ficou muito longe das propostas libertárias do Maio de 68. Começa, portanto, por atacar a própria noção de consciência. Esta é muito mal vista, não vá ser o lugar da independência de espírito e da revolta. Daí que não exista mais consciência como reservatório da inteligência e da moral; agora só há relações e intersubjectividades. Não há moral, há narrativas todas equivalentes. Não há conhecimento, há competências. Não há sexo, há pulsões difusas e em transformação não se sabe bem para onde. Não há cultura, há artesanato. Teatro só o subsidiado. Não há crime violento, há desadaptação. Não há religião, há psicologia behaviorista. Os escritores protegidos não passam na sua maioria de dactilógrafos e publicitários, e o que se promove é a mediocridade. Não há ideias, há barganha. O poc fez da esquerda nacional, seu arauto, o lugar da indigência intelectual. Do esquerdismo da miséria passámos para a miséria do esquerdismo.

Estaríamos perante meras imbecilidades se o assunto não fosse muito mais grave. A estratégia do poc é simples; como a classe operária é cada vez mais diminuta e não parece querer saber dele, vira-se contra a sua principal rival; a Sociedade Civil (sim, com maiúsculas). Aproveita o facto de a Sociedade Civil ter sido sempre fraca em Portugal por falta de cultura liberal. O objectivo é transformá-la por dentro e domesticá-la delapidando as forças vivas que a povoam. O mote é mais estado e melhor estado. Mais funcionários e menos contratos. Mais despesas públicas, mais impostos e mais dependência. Consegue-se assim um estado socialista de funcionários atentos, venerandos e obrigados, estupidificados e infantis, arrumados numa prateleira do orçamento. Por cima reina um estado totalitário, inculto, indolente e manhoso.

5 O poc afecta gravemente a formação do pensamento crítico e consequentemente a qualidade da expressão que o alimenta. Mesmo que a liberdade em si própria não fique limitada, fica seguramente ofendido o conteúdo que o uso dessa liberdade transmite. Vejamos.

A opinião pública é um elemento fundamental na legitimação de uma vida democrática saudável. A formação da opinião pública começa em fins do século XVIII à medida da vulgarização das ideias democráticas e liberais acompanhadas da difusão da instrução. O progressivo alargamento do sufrágio pressupunha a formação de uma opinião pública esclarecida e livre. Foi ela que legitimou os primeiros regimes democráticos.

Ora, o actual encarceramento do pensamento dentro de modelos rígidos diminui o papel da opinião pública e o efeito de legitimidade política que dela resulta. Esta realidade é tanto mais preocupante quanto se sabe que hoje o acesso à net e às redes sociais faz-nos correr o risco de, em vez de esclarecer a opinião, a agregar em torno de círculos mais ou menos isolados o que proporciona o radicalismo e a desinformação. A manipulação dos algoritmos disponíveis facilita esta realidade.

A tirania do poc vai ao encontro desta deformação da opinião pública. O poc faz circular o pensamento dentro de um universo concentracionário. Os cidadãos estão acantonados num espaço cada vez mais pequeno e separados dos outros por uma linha vermelha intransponível. Não há comunicação. E a divisória é o pensamento poc. Este reduz as opções porque impossibilita o pluralismo. Ora, é deste que vive a formação do espírito crítico. Quanto mais alternativas mais facilmente ele se forma e manifesta. O espírito crítico vive do inventário das opções disponíveis e do juízo que lhe merecem. Se as opções forem curtas não medra e apouca-se o juízo crítico porque o raciocínio empobreceu. Esperem pelas próximas eleições portuguesas e verão o uso atribiliário que nas redes sociais e na net em geral se vai fazer do qualificativo extrema-direita e fascista em nome do poc. Vai voltar o estúpido argumento ad hitlerum.

A expressão fica, portanto, diminuída e empobrecida pelo poc. Esta realidade desqualifica a vida democrática porque a põe a reboque de chavões e ideias feitas que adulteram o pensamento.

6 Concluindo, o poc diminui a qualidade da vida democrática. Não importa para esta apenas que os cidadãos tenham acesso aos meios de informação e que os possam utilizar. Importa tanto ou mais a qualidade da informação disponível e a formação do espírito crítico. Não importa apenas que o cidadão tenha acesso à net e às redes sociais. Importa também o que lá está. A democracia não vive apenas da disponibilidade da informação sobretudo se esta for truncada e tendenciosa. É que se faltarem as alternativas esclarecidas e racionais a informação disponível serve apenas para melhor justificar a ditadura e a imbecilização dos espíritos. Não há informação, mas doutrinação. Vejam o caso chinês em que os cidadãos são constrangidos a começar o seu dia por ouvir nos seus smartphones as últimas façanhas do comité central do partido, ficando a sua assiduidade registada com graves consequências pessoais e profissionais se assim não for. O poc quer instalar um smartphone ligado a uma central dentro das nossas cabeças. No nosso país estamos cada vez mais perto desta realidade e o pior é que ela se afirma quase silenciosamente e vai paulatinamente apoucando os nossos filhos e netos. É tempo de despertar. A nossa arma é a crítica e a consciência racional. Está mais que justificada a acção pacífica mas intransigente com o que querem fazer de nós.

O poc não passará. Será nossa a responsabilidade se ficarmos apáticos e refugiados no nosso canto. É preciso sair disto depressa e recuperar a nossa sanidade mental. Queremos ser cidadãos e não carneiros.