Analisemos em síntese esse labirinto em que vive o português.

Muitas vezes encontramos no português uma pessoa de causas e princípios, mas que na prática acaba por ser bastante flexível. Isso até pode ser muito bom num quadro de democracia forte e estruturada com checks (escrutínios) and balances (representação de diversos interesses) claros. Em Portugal é um desastre pois ganha a flexibilidade de quem pode. Essa relação entre boas causas e princípios e más práticas reflete-se de forma clara entre leis e excepções: as leis são as melhores do mundo, o problema é só a sua regulamentação, os despachos que as contornam e contradizem, os regulamentos institucionais que as arredondam, os órgãos colegiais que votam ilegalidades…e quem quiser que vá para tribunal para ver se eles funcionam! Basicamente, aprender a viver no labirinto português implica ‘apostar no cavalo certo’ e nunca ‘cuspir no prato em que se come’, que é como quem diz nunca criticar de forma alguma quem manda … Aceitar o ‘não’ de quem manda porque sim é o que há a fazer, a não ser que o coração se imponha. O que às vezes acontece, pois o português é por vezes mais coração do que cabeça. De forma mais simples, há uma força contínua para que aceitemos que o país tem dono, as instituições têm dono e que, para se ser um dia cavaleiro, tem de se ter uma vida inteira de escudeiro. Mas há alguns que vão resistindo a esta narrativa e que gostam pouco de trelas. Mas claro que é muito difícil aceitar o que temos e muito mais difícil ainda é a mudança.  Há um momento na vida em que se aceitou a via de administrativista ou de poeta boémio. E há sempre um preço! Assim, o ficar cá ou o ir embora em qualquer idade é uma tensão portuguesa. De uma ou de outra forma, o português não consegue sair do seu labirinto de desencontros que o Variações interpretou tão bem.

Analisemos agora em mais detalhe.

Ser a favor das mulheres e das minorias, ser a favor da meritocracia, da luta pelo ambiente, contra a corrupção…e por aí fora. Temos muitos portugueses com causas, cheios de princípios. O problema é a prática! Mas atenção: a crença é verdadeira. Acreditamos mesmo que somos a favor de tais princípios. O problema é que quando os princípios têm de ser aplicados na nossa casa, nas nossas instituições, nas nossas práticas quotidianas e profissionais, é que a porca torce o rabo! O nosso caso é particular, a situação é específica, o contexto tem de ser tido em conta, a cultura…’hoje joga o Benfica’…o chefe não aprova… Enfim, há inúmeras razões para que os princípios que defendemos acerrimamente enquanto tais, não se apliquem no nosso quintal, naquele momento.

É uma esquizofrenia portuguesa: temos valores e princípios mas eles só são defensáveis em geral e abstracto. É como a lei.  Temos a melhor legislação do mundo só que na prática, faz-se o que se pode, pois nem se regulamenta, nem há recursos para fiscalizar, nem convém haver. A lei é geral e abstracta…mas depois dá jeito que no meu caso concreto haja uma excepção. E se tenho poder para criar tal excepção, nem pestanejo. Se não tenho poder para criar, mas bons advogados para a encontrem ou pareceres jurídicos que a defendam, ótimo. Com os princípios, é o mesmo. Há duas vias interessantes de criar excepções: leis não regulamentadas e decretos-lei pouco claros e, depois, despachos, despachos, despachos! E também há novos decretos-lei para harmonizar com os despachos! Haverá outras formas de criar excepções, claro, para quem esteja muito por dentro deste assunto. É preciso estar muito por dentro e a tradução para o cidadão comum é sempre cheia de enviesamentos propositados. Enfim, estamos doentes de uma diarreia legislativa. A revogação continua de leis e decretos-lei torna de difícil leitura ao cidadão a legislação consolidada e, ao mesmo tempo, não se regulamenta, ou regulamenta-se apenas em parte. Por outro lado, mesmo quando está regulamentado, usam-se despachos avulso que acrescentam, especificam, arredondam ao que já estava regulamentado ou mesmo no decreto-lei. O objetivo é claro…a clarificação para quem manda, a perdição para quem tem de obedecer: o cidadão! Mas atenção, o desconhecimento da lei não aproveita a ninguém! Quer dizer, a alguns aproveita – a quem manda: é sempre bom que os outros estejam perdidos! E que quem manda ainda possa dizer, porventura com sobranceria’ – Então você não sabe!? Não leu!’ Como quem diz ‘Meu grande burro!’ – E há quem acredite! Mas se o outro tem o cavalo, o que nos resta senão ir de burro?!

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É de facto necessário ‘apostar no cavalo certo’. ‘- Você não apostou no cavalo certo!’ – esta frase dita de cima para baixo na boca de um esperto saloio (dos muitos que existem em Portugal e que conseguem viver muito bem porque são, por natureza, invertebrados) é uma das filosofias de base portuguesas! Antes de mais é preciso ser esperto: seguir o poder e o dinheiro e estar disponível para os servir acima de tudo o resto. E no país mais centralista da Europa, mesmo a possibilidade de venda da alma ao diabo não é para todos: a competição é acérrima e muitos ficam à porta. Apostar no cavalo certo não é para quem quer, é para quem pode! Ou seja, dá jeito ter cavalo ou ‘pôr-se a jeito’ de ser escudeiro de algum cavaleiro ou cavalo de alguém que já foi cavalo de outrém: servir a quem serviu! O problema é que o português também tem muitas vezes o coração do lado certo e, por isso, aposta no cavalo errado. Outras vezes, mesmo que esteja no seu labirinto de desencontro, é o facto de ter o coração ao pé da boca que o trama. E como dar a volta a isto? É o nosso lado de poeta boémio!

Quem não aposta no cavalo certo em Portugal, está condenado a uma vida sem dono. Viver sem dono em Portugal é difícil porque tudo parece ter dono. Só se percebe bem isso quando se tem ideias próprias ou se é empreendedor, quer em instituições públicas quer, mesmo, em empresas privadas. Quem aceita simplesmente ser um funcionário ou até não fazer nada, o ‘não’ de quem manda nunca o afetará. Mas o ‘não’ de quem manda, nas suas várias modalidades, que requereria outro artigo, não põe só em causa alguns indivíduos que têm ideias ou que querem fazer algo, põem em causa as instituições e o país. Aceitar o não de quem manda só porque sim ou não aceitar e impor uma resistência distingue dois tipos de portugueses. E nunca saberemos ao certo quais são as bases antropológicas que estão na base dessa decisão.

Como é que um português acaba como administrativista ou como poeta boémio? É o acaso, o destino? Não sabemos mas porventura qualquer um tem em si essas duas possibilidades. E o Pessoa juntou os dois! O momento em que cada um de nós ‘se atravessa’ e ‘chega à frente’ enredando-se numa história que decide por si o que vai ser dava certamente várias short stories da portugalidade. O certo é que no início são tudo bons rapazes e raparigas e ‘vai-se a ver’, estavam todos no cimo do muro: uns caiem para um lado e tornam-se subservientes; outros caiem para o outro e tornam-se sobreviventes. Uns transformam-se em administrativistas, outros em poetas boémios ou cronistas deste nosso Portugal. E isso acontece porque as instituições em Portugal tendem para a ‘falha catastrófica’. E tendem porque ela está legalmente inscrita, faz parte do ADN das instituições. De facto, o regime jurídico de muitas instituições parece ser feito à medida dos pequenos ditadores: quando aparece um é que se percebe como o regime jurídico se adaptou tão bem!

E assim, o ficar cá ou o ir embora é sempre uma tensão. O ir embora pode ser para as ‘serras’ como lhe chamou o Eça e produzir azeite (e agora que está tão caro!) como fez o Herculano ou ir embora para mais longe ainda. Se formos levamos a saudade, se não formos fica a nostalgia da saudade que gostaríamos de ter tido!