Consta que numa importante e popular entrega de prémios alguém perdeu publicamente a cabeça. Quando aparentemente voltou a encontrá-la, admitiu em público que é nos momentos de congratulação colectiva que o Diabo surge. Nesse sentido, parece que o Inferno, antes de ser o destino pelo mal que fizemos, começa quando os outros nos dizem: “muito bem!” O problema nasce menos quando os outros nos atacam e mais quando os outros nos adoram. Uma entrega de galardões é por definição, e nesse sentido, um culto satânico.

E, no entanto, somos irremediavelmente atraídos por esses momentos de reconhecimento medalhado — talvez seja o único prémio divino acessível numa época roída por tanto cepticismo. E vestimo-nos com a melhor roupa de Domingo para entrar nos claustros dessas sofisticadas avaliações cívicas. Não é só o prémio que é dado, é também uma forma de perdão espiritual. Para aumentar a coincidência deste novo profano com o velho sagrado, é geralmente nesse mesmo velho dia santo de Domingo em que o evento acontece e é transmitido da forma mais cósmica que se conseguir.

Quem não estiver no comprimento de onda destes modernos e intermédios Dias do Juízo, faz pouco de tanto barulho e rejubila no mais pequeno acidente. Pode ser a subtil disfunção de guarda-roupa, o tropeço na passadeira vermelha, o vislumbre de embriaguez no discurso de agradecimento. É como ver a Missa chata a correr mal e daí nascer uma inesperada diversão. No fundo, continuamos a achar piada à entrada de camponeses no palácio porque a pompa tem modos de agredir os simples. E quando há problemas na pompa, há salvação para os saloios.

Talvez a confissão a que me prestarei mereça que me conduzam coercivamente a uma terapia qualquer que me tem faltado (é possível e provável). Mas reconheço que em entregas de prémios, sou dos que torcem para que suceda algo semelhante à cena-clímax da “Carrie”, o filme de Brian DePalma baseado no livro do Stephen King—desejo uma Rainha da Beleza desfigurada suscitando uma desgraça global. Não é muito mais interessante quando, na expectativa da premiação de uns poucos, sucede a punição de muitos mais? O castigo parece-me um valor muito mais democrático do que a condecoração. Até porque geralmente as cerimónias de condecoração são exclusivas e as outras têm sempre lugar para mais um.

Parte da minha preferência por palmadas em vez de palmas vem também do facto de algumas das melhores coisas da minha vida terem nascido como grandes secas. Dou alguns exemplos: comecei a ver filmes não-americanos graças à chatice pegada que foi assistir numa aula de Alemão do 10º ano às “Asas do Desejo” do Wim Wenders; quebrei a minha dieta rigorosa de punk/hardcore a meio dos anos 90 graças ao tom aborrecido dos Velvet Underground mostrados pelo meu colega Luís; quis ser escritor graças ao último capítulo de “O Memorial do Convento” do José Saramago que tem naquele desfecho o antídoto ao monumental tédio do livro. O que seria de mim sem as maçadas que se tornaram maravilhas?

Quando nos preparamos para prémios, fugimos dos melhores milagres que tendem a ser os da transfiguração. E especializamo-nos na demonologia típica da bajulação. Não há surpresa nem salvação no pódio público. Também por isso mesmo, a Bíblia avisa repetidamente para termos cuidado com o que desejamos: não vá o paraíso da aprovação geral tornar-se numa masmorra em forma de sala de troféus. Há castigos aparentes mais promissores do que coroações em que perdemos a cabeça.

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