Recentemente caiu com algum estrondo mediático a notícia de que a Google tinha obtido uma licença bancária num país da zona Euro, a Lituânia. Tal começa a desenhar-se, como imaginará, como o fim do mundo tal qual o conhecemos. As grandes empresas tecnológicas vão dominar o mercado financeiro e até se recordaram as palavras do Sr. Governador do Banco de Portugal que alegadamente já terá alertado para o facto destas empresas tecnológicas terem acesso a grandes bases de dados de onde conseguem extrair todas as vantagens competitivas face aos bancos tradicionais.
Estranho que, de acordo com o Sr. Governador do Banco de Portugal, ter uma base de dados de buscas ou de fotografias faça com que um novo interveniente no mercado passe a ter tais vantagens competitivas. Afinal parece que a sofisticação de um banco se encerra num conjunto de ‘likes’ de fotografias de gatos e de buscas de fotografias de senhoras peitudas. Nesta ordem de ideias, deve ter sido o reduzido tamanho da base de dados do BPP, do BPN, do BANIF, do BCP, da CGD, do Montepio e do BES que causou as crises pelas quais estes bancos passaram. Também nesta ordem de ideias, nada do que os funcionários dos bancos construíram ao longo das vidas profissionais vale o mesmo que a lista de buscas de um cliente. Tirando este detalhe cómico que diz muito daquilo pelo qual o sistema financeiro nacional foi (e é) obrigado a passar, deixe-me explicar-lhe porque este estará longe de ser o pior fim do mundo pelo qual já passámos.
Ter uma licença bancária na zona Euro é coisa para custar 11 milhões de euros e um ano de trabalho. Isto a avaliar pela última vez que a minha empresa acompanhou um processo destes. Claro que não estamos a falar de Portugal, mas em vários países da Europa isto não só é possível, como é bem possível. A Lituânia, ao contrário do que vi para aí escrito, não é particularmente permissiva. Só não é estupidamente impeditiva. Poderia ter sido noutro país, como a Holanda ou o Luxemburgo. Como pode imaginar, este tipo de valores deve andar entre os gastos de café e os de papel higiénico da Google, da Amazon ou do Facebook. Se alguma destas empresas tivesse interesse no sistema financeiro, apostaria em grande no sector porque o resultado anual da Amazon, por exemplo, compraria um banco europeu de dimensão razoável. Depois, porquê fazê-lo no pior mercado do mundo para se ter um banco? Por que não “jogar em casa”? Qualquer uma destas empresas abriria um banco nos EUA ou na China com uma fração do custo e num ambiente regulatório que não se baseia em iliteracia matemática e estaria a operar em economias muito mais pujantes que a economia europeia. Têm tido notícias da razia que a Apple ou o Facebook têm feito pela banca americana? Não têm, pois não?
Mas, se ainda assim estes argumentos não lhe parecem suficientes, deixe-me avançar com uma história bem real. Tempos idos, uma das empresas com maior acesso a dados neste país teve a ideia, que todos leram como brilhante, a começar por este vosso criado, de montar um banco à saída do supermercado. A empresa era a Modelo-Continente e conseguiu um recorde de subscrições do cartão de crédito do banco que estava a lançar, o Banco Universo. A Modelo-Continente era a Google dos anos 90, tinha acesso aos clientes como ninguém e vender produtos financeiros não deveria ser assim tão diferente de vender outro produto qualquer. Não me lembro se o Governador do Banco de Portugal da altura terá feito referência à quantidade de dados que um hipermercado daqueles tinha acesso, mas imagine que todas as pessoas que passassem pela caixa tinham um cartão de crédito que lhes dava condições especiais quando usado naquela caixa. Uma revolução!
Os bancos tradicionais tremeram. Como poderiam vencer aquilo? Naquela altura nem se falava de internet banking, muito menos de Apps, e a única forma dos bancos chegarem aos clientes era pelo balcão. O balcão deste banco eram as caixas do supermercado por onde os 10 milhões de portugueses passavam. O BCP, com a Jerónimo Martins, ainda lançou um concorrente, o Banco Expresso Atlântico que tinha um microbalcão à saída de todos os Pingo Doce. Não havia a menor dúvida, era o fim da banca tradicional como a conhecíamos. Agora diga-me, caro leitor, quantas vezes usou o Banco Universo ou o Banco Expresso-Atlântico na última semana? Os mais novos nem devem saber o que foram tais marcas. O primeiro acabou absorvido pelo BPI numa operação de troca de participações com o grupo Sonae e o segundo foi integrado na rede do Millennium BCP e nunca mais se voltou a falar disso.
A conclusão óbvia é que há muito mais no negócio da banca do que acesso aos clientes ou aos seus padrões de consumo. Há todo um capital que se vai acumulando nas pessoas que trabalham nos balcões dos bancos e que o usam para entregar valor aos seus clientes, valor que eles não recebem numa App ou numa prateleira de um supermercado, por ilógico que isto possa parecer. Aquilo que impressiona em cada um destes fins do mundo é o pouco valor que as pessoas ligadas à banca dão ao seu próprio conhecimento, isto sem falar nos reguladores.
Mas vejamos os casos das duas fintechs mais bem-sucedidas do mercado neste momento, o banco alemão N26 e o banco inglês Revolut, hoje bancos de pleno direito. Ambos são exemplos de eficiência operacional no sentido que qualquer pessoa abre uma conta em 10 minutos e pede um cartão de débito que chega a casa no prazo de uma semana. Do ponto de vista tecnológico, nada de especial. Deixasse o Banco de Portugal fazer isto aos bancos portugueses e todos eles estariam prontos num par de meses para fazer a mesma coisa. No entanto, a experiência que o utilizador tem ao abrir uma conta no Revolut ou no N26 impressiona, basta um telemóvel com máquina fotográfica. Outra coisa que também impressiona é a quantidade de dinheiro que estes bancos perdem todos os anos. Sim, é muito fácil adquirir clientes para estas empresas porque não cobram os custos de operação aos clientes. Fácil de adquirir clientes, como fácil será perdê-los quando um qualquer chinês na ponta dos investidores começar a perguntar onde anda o dinheiro dele e o banco tiver que começar a cobrar os custos operacionais. Diga-me, meu amigo, quantas vezes escolheu o seu banco por o cartão de débito ser bonito ou funcionar bem?
Uma coisa que qualquer gerente de balcão sabe contar é o portefólio de produtos financeiros que o cliente tem com o banco. Sabe porque sabe que um cliente de um banco é um cliente que tem cartão de débito, mas tem crédito à habitação, tem PPRs, fundos de investimento, depósitos a prazo, etc. A conta onde faz pagamentos é só aquela porque sim, poderia ser outra. E quando se diz ao cliente do crédito à habitação e do PPR para receber o ordenado na conta daquele banco, ele responde “e porque não?”. E esta construção do portefólio do cliente dentro de um banco é o capital das pessoas que nele trabalham. Achar que estas pessoas precisam de conhecer as pesquisas do Google ou os vídeos do YouTube do cliente para lhe entregar este valor é simplesmente ridículo.
Não, o fim do mundo que vem aí por a Google ter uma licença bancária não vai ser o pior dos fins do mundo pelos quais já passámos. Dizer que ter acesso aos dados dos clientes para ter uma vantagem competitiva face aos bancos tradicionais diz que, ou se sabe muito pouco de dados, ou muito pouco de finanças, ou muito pouco de ambos. As pessoas na banca tradicional não gostariam de ter mais dados? Claro que gostariam, adorariam. E nelas os dados teriam valor porque elas saberiam como esses dados poderiam acrescentar valor ao valor que elas já entregam aos clientes. Em vários artigos, já referi que dados económicos têm variância infinita, isto é, quanto mais dados temos maior é o erro que temos. É por isso que precisamos de quem saiba de finanças para os aproveitar. Agora, achar que se chegar por aí com uma base de dados, por enorme que seja, vou esmagar o mercado, é mesmo porque não se aprendeu nada.
(As opiniões expressas neste artigo são pessoais e vinculam apenas e somente o seu autor)
PhD em Física, Co-Fundador da Closer, Vice-Presidente da Data Science Portuguese Association