Um aeroporto internacional, sei-o agora, é muito mais do que um aeroporto. Há pouco tempo, estive uns dias na capital búlgara a participar na “13th Pan-European Conference on International Relations”, organizada pela European International Studies Association (EISA), e, entre idas nocturnas e voltas madrugadoras, passei muito tempo em aeroportos. Do Porto para Sófia fiz escala em Atenas e de Sófia para o Porto fiz escala em Milão/Bérgamo. Fosse eu provido de um intelecto socialista e teria provavelmente consumido o meu copioso tempo de espera nos aeroportos a maquinar novas fórmulas de tributação das bestas de carga a que alcunharia, com o pudor que caracteriza os calhordas, de “contribuintes”; sendo, pelo contrário, uma pessoa dotada de vergonha na cara, limitei-me a fazer o que costumo fazer enquanto espero: ouço Mahler nas suas inquietas sinfonias e observo pessoas nas suas desassossegadas cacofonias.
Nestes longos tempos de espera, ao reparar numa mão destrambelhada de pai a acenar para uma filha que entrava para a zona de embarque, apercebi-me de uma coisa que se me apresentou à consciência com a evidência nua e a força bruta de uma epifania fenomenológica à maneira daquela raiz de castanheiro de que fala Sartre em A Náusea: o comunismo é impossível. O comunismo será sempre impossível. O comunismo é a impossibilidade tornada ideia. O comunismo é a impossibilidade da humanidade e a humanidade é a impossibilidade do comunismo. Comunismo e humanidade disputam um complexo jogo de soma zero e apenas uma coisa se interpõe, íntegra e integral, entre o comunismo e o Novo Homem: o ser humano.
Dessa interposição, que obstrui incansavelmente o caminho dos comunistas em direcção ao comunismo, decorre toda a história necessariamente sangrenta do comunismo: as execuções sumárias, as purgas neuróticas, os desaparecimentos nocturnos, as fomes industriais, os canibalismos insulares, as “crianças socialmente perigosas”, as deportações massivas, os “arquipélagos do Gulag” – numa palavra: os cadáveres. Os milhões de cadáveres. Europeus, africanos, asiáticos, latino-americanos. Cadáveres de todo o mundo, amontoai-vos. O comunismo não se tornou a maior fábrica de produzir mortos da história da humanidade por acidente: pelo contrário, é uma lei interna inexorável. Não pode haver comunismo senão produzindo mortos. O comunismo só poderá fazer nascer o Novo Homem por cima do cadáver do último ser humano. O comunismo, portanto, é impossível. E não é porque somos humanos imperfeitos que o comunismo é impossível: é porque somos humanos.
Passem uma manhã, uma tarde ou uma noite num grande aeroporto e observem. Os abraços trapalhões, como se braços humanos não tivessem sido concebidos para despedidas entre pai e filha. O sorriso condoído dos que partem e a lágrima incontida dos que ficam, o passo impaciente dos que regressam e a mão permanente no peito dos que aguardam. A dor da separação e a felicidade do reencontro. Feitas uma da outra. Feitas uma para a outra. Perceberão então por que razão o comunismo sempre atacou a família – e por que razão o comunismo sempre saiu derrotado. Perceberão então por que razão uma mãe chora a ler uma carta do filho de um modo que um militante jamais chorará a ler um texto de Lenine. A Mãe de Gorki comove-nos não por retratar uma mulher que tinha um filho e se apaixonou pela revolução mas por retratar uma mãe que se apaixonou pela revolução por amor ao filho: não é pela revolução que Pelágia luta, é pela revolução do filho. Não é pela revolução em que acredita o filho, é pela revolução em que acredita o filho (quando, no final, capturada, diz: “Não afogareis a verdade num mar de sangue”, é o filho que a mãe está a citar: palavras de filho em voz de mãe).
A fidelidade familiar, genuína e incondicional, é o sonho de militância dos comunistas, o nec plus utlra da devoção que os comunistas, émulos estéreis, terão sempre de impor, de contrafacção, recorrendo a quilómetros de tundra siberiana e a gramas de ração diária, devorando homens e mulheres, crianças e velhos, na consumada indistinção igualitária da mortandade sem classes. Por isso a família é uma comunidade de amor entre livres e o comunismo – a família abolida, a família abortada, a anti-família por excelência – só pode gerar uma comunidade de ódio entre escravos (a coorte de pequenos informadores e bufos de Estaline, delatores dos seus próprios familiares e que infestam as páginas de Sussurros, de Orlando Figes, não é uma aberração nascida de uma gravidez ectópica do materialismo histórico: os Pavlik Morozov são os primogénitos hemofílicos dos disparates hemorrágicos de Marx-Engels sobre a família “burguesa”).
Também ali, naquela mão que acena, não há nacionalidades. O internacionalismo comunista pode vergar nações, mas jamais romperá um cordão umbilical. O internacionalismo maoísta cederá sempre lugar ao internacionalismo mãoista. Enquanto virem num aeroporto uma mão de mãe, de pai, de filho, de irmão, de marido, que acena feita doida varrida, feita cãozinho aos pulos quando o dono chega a casa, o punho cerrado não passará. Magoará, brutalizará, tiranizará, mas não passará. A sociedade sem classes é impossível enquanto houver uma mão de pai a acenar à filha que já perdeu de vista. Mão de pai que acena e não se cansa é o pior inimigo do punho cerrado que aposta no cansaço dos homens. Mão contra punho. Mão aberta contra mão fechada. Futuro contra Fim da História. A mão de pai continua ali, fiel e tenaz, a acenar. O comunismo já perdeu. O comunismo perderá sempre. De todas as vezes. Até ao fim dos tempos.
Naquele dia percebi. Não são os homens que esperam o Fim da História, como pensam, dialécticos, os comunistas. É a História que não tem fim porque tem de esperar pelos homens: e os homens, a-dialécticos, esperam pelo regresso daquela filha àquela mão de pai que ficou a acenar naquele aeroporto de Milão. Eu vi o Fim da História – e não tem fim.