Sofremos de presentismo, ignorando uma visão ampla do tempo. No caso da história da Igreja, agimos, também, como se ela estivesse fechada dentro dos muros confessionais. Ora, a Igreja enfrentou, enfrenta e enfrentará crises. Em 2025, celebraremos 1700 anos de uma das primeiras tensões significativas. E devemos perguntar: o que podemos aprender com isso?

O início do séc. IV foi particularmente conturbado. Após a abdicação de Diocleciano em 305, Roma mergulhou em guerra civil até 312, devido à divisão do Império. Constantino saiu vencedor e, buscando unificar o Império e contrastar com as perseguições cristãs do seu antecessor, promulgou, em 313, leis que davam ao Cristianismo igualdade religiosa. Porém, não era um convertido e um tolerante em sentido moderno. Um ano após eliminar o seu aliado, que governava, até então, a parte oriental do império, Constantino convocou a primeira reunião universal de Bispos. O momento, decorrido em 325, ficou conhecido como o Concílio de Niceia.

Neste contexto, a Igreja vivia duas crises. Curiosamente, ambas no norte de África e em cidades rivais de Roma: Cartago e Alexandria. Em Cartago, marcada pelas perseguições aos cristãos, a comunidade estava polarizada. De um lado Donato, que via quem não resistiu às perseguições como um traidor, associando a Igreja à pureza moral e exigindo a rebatização dos traditor. Doutro lado, Ceciliano, de quem corriam rumores de colaboracionismo nas perseguições, mas que defendia uma abordagem menos radical. A violência entre os grupos foi extrema: bispos foram mutilados e igrejas vandalizadas. Mas Constantino, ao tentar intervir, cometeu um erro grave. Vários sínodos já tinham dado razão a Ceciliano, mas o imperador emitiu um édito obrigando os donatistas a entregar as suas igrejas aos católicos. A execução rigorosa dessa decisão consolidou nos donatistas o sentimento de serem os verdadeiros mártires. E, mais tarde, quando, em 321, Constantino emenda a mão e dá liberdade aos seguidores de Donato, o donatismo acaba por se transformar em revolução social, engrossando as suas fileiras com escravos, desertores, salteadores e agitadores.

O que sabemos a partir daí? Que, embora Donato e Pirminiano, seu sucessor, tenham morrido, e os donatistas tenham, posteriormente, enfrentado a força intelectual e política de S. Agostinho, A paz só foi restaurada em 411, com resquícios do donatismo persistindo até 533.

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Em Alexandria, a tensão, por outro lado, era entre o Bispo, Alexandre, e um padre, chamado Ario. Ambos tentavam salvaguardar o monoteísmo, mas de maneira contrária. Ario defendia que Deus era absolutamente uno e que, por isso, não tolerava a pluralidade “dentro de si”. Alexandre, por sua vez, defendia que Deus era uma relação, e que a relação entre Deus Pai e Deus Filho não era apenas de semelhança, ia mais fundo. Como seria de esperar, isso tinha consequências políticas e sociais. Se Ario estivesse certo seria legítima uma maior assimetria na relação dos poderes. O governado seria diferente do governante. Mas se Alexandre estivesse correto, não só ambos teriam a mesma natureza, como seria até incerto considerar que existiria, explicativamente, um governante e um governado.

A verdade é que, tal como aconteceu em Cartago com o donatismo, o arianismo rasgou o oriente como fogo em lenha seca. Existiam até canções populares que o propagavam. Talvez mais simples, aparecia como contra a elite, embora tivesse colhido a simpatia de muitos Bispos solidamente formados. O que leva a uma conclusão possível. Não terá sido Ario a convencê-los. A sua formulação detonou, isso sim, uma tensão que já existia. O Arianismo era, na época, “o que as pessoas queriam ouvir”. Quem o apoiava não partilhava toda a sua doutrina, e reagia numa onda de aversão crescente ao poder do Bispo de Alexandria. Quem o suportava, também não tinha uma teologia coincidente com a sua. Ou seja, ambos eram vistos como um mal menor.

É neste contexto que acontece o Concílio de Niceia. Constantino achava que era necessária uma fórmula de fé que colocasse fim aos conflitos. Enganou-se, de novo. De facto, parte considerável do credo que é hoje rezado pode ter sido escrito nesta periférica cidade da atual Turquia, mas a fórmula de fé não conferiu unidade imediata ao cristianismo e ao império. Aliás, até o próprio Constantino, no final da vida, acabaria por duvidar do apoio que deu às decisões de Niceia. No entanto, a liberdade que Ario e os seus apoiantes tiveram, em Niceia, pode ter sido imprescindível para que, em 369, já se possa falar da derrota definitiva do arianismo. A longo prazo, uma palavra nunca presente na bíblia, mas formulada no credo de Niceia – a expressão ὁμοούσιος, que hoje é traduzida como consubstancial – acabaria por ser fatal.

Ora, é possível defender que a derrota do donatismo potenciou a distinção entre quem nós somos e o que nós fazemos, da mesma maneira que a derrota do arianismo abriu a porta ao reconhecimento da dignidade humana, ao assumir que Cristo, verdadeiramente Deus e verdadeiramente Homem, era da mesma substância do Pai, mas esta crise deixa quatro certezas no ar: 1.ª) A eliminação da liberdade das fações, ainda que bem-intencionada, acalenta a fação que se quer eliminar; 2.ª) Nenhuma decisão, fórmula ou acordo pode explicar e resolver plenamente uma crise; 3.ª) Em alturas de grande polarização, a solução está, muitas vezes, fora do debate; 4.ª) O poder central é pouco eficaz na gestão das crises nascidas na periferia. Em geral, lições que teimamos em ignorar.