Embora não seja possível identificar a sua origem com rigor, a expressão “lugar de fala” circula no universo de língua portuguesa pelo menos desde 2017, em particular no espaço cibernético do ativismo identitário. Mas terá sido a polémica em torno das traduções dos livros de Afonso Reis Cabral nos Estados Unidos a levantar as seguintes interrogações: o que significa dizer que um homem que se identifica como homem não tem lugar de fala para escrever sobre uma pessoa transexual, como o autor faz em Pão de Açúcar? Faz sentido impor este tipo de limites à literatura? E será que ver a literatura como “um mero expressar do lugar de fala, ou melhor, da identidade de quem a escreve, [significa] entrar num ciclo absolutamente vicioso e atentatório da própria literatura”?

1O lugar da fala

Para compreendermos a expressão “lugar de fala” temos de recuar a um argumento feminista apresentado pela teoria do ponto de vista (“standpoint theory”) que tem uma dimensão epistemológica. Podemos apresentar esse argumento em três passos:

  1. De acordo com a teoria do ponto de vista, o conhecimento é socialmente situado, pelo que aquilo que é apresentado como conhecimento numa determinada sociedade não resulta de um processo universal, objetivo e neutro de construção científica, mas é antes produzido por um determinado grupo social que está numa posição de poder.
  2. Isto significa que existem grupos sociais marginalizados que, por serem excluídos, não contribuem para a produção do conhecimento – mas essa exclusão torna-os capazes de aceder a informação, experiências e conhecimentos que não estão disponíveis para o grupo dominante, pelo que o conhecimento produzido por este é necessariamente lacunar.
  3. A exclusão dos grupos marginalizados constitui uma violência epistémica sobre esses grupos pelo que as estruturas de investigação e produção de conhecimento deveriam ser alteradas por forma não só a integrar, mas sobretudo a privilegiar o conhecimento que vem desses grupos marginalizados.

Na tradição do feminismo de 2.ª vaga, este argumento tem inspiração marxista, nomeadamente na ideia de que pessoas que pertencem a uma classe oprimida (o proletariado) têm um conhecimento especial do funcionamento do mundo que não é percetível para a classe opressora (burguesia), e originou uma revolução teórica no domínio da filosofia da ciência e do conhecimento: o facto de a ciência moderna ter sempre marginalizado os contributos femininos torná-la-ia uma ciência do homem, e não uma ciência da humanidade.

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A mais importante teórica neste domínio talvez seja Sandra Harding, que abriu a discussão em torno deste argumento no seu livro de 1986 – The Science Question in Feminism –, recebido com muita polémica por recorrer a metáforas de violação e tortura para descrever o método científico moderno. Harding sugere mesmo que seria mais honesto designarmos as leis de Newton como “o manual de violação de Newton”.

Mas o seu principal contributo é a ideia de “strong objectivity” (objetividade forte), que se contrapõe à objetividade fraca da ciência tradicional: esta considera que a neutralidade do investigador torna a investigação objetiva; em sentido contrário, Harding entende que o conhecimento nunca pode ser neutro pois o investigador está sempre condicionado pelo seu lugar e identidade sociais. Assim, devemos 1) reconhecer o papel desempenhado pelos vieses que resultam do lugar social que ocupamos, e 2) privilegiar o contributo das posições marginalizadas, pois estas posições podem trazer novas formas de compreensão aos projetos de pesquisa (e é isto que garante a objetividade forte).

Diz-nos Harding sobre o funcionamento da ciência:

“[O] quadro conceitual dominante serve aos valores e interesses dos grupos mais vulneráveis apenas naqueles casos em que todos possuem os mesmos valores e interesses. Por exemplo, a medicina ocidental moderna tem servido aos valores e interesses da maioria quando nos referimos à descoberta de doenças, na medida em que tanto o rei quanto seu escravizado podem contrair sarampo ou HIV/AIDS. Contudo, ela não faz o mesmo em sua preocupação com os problemas de saúde que afetam principalmente pessoas ricas e quando produz remédios que apenas os ricos podem acessar.”

Esta perspetiva foi posteriormente aprofundada por autoras do pensamento feminista negro, nomeadamente Patricia Hill Collins, que recorda como a perspetiva das mulheres afroamericanas, resultando de uma matriz de opressão, apresenta um ponto de vista único. Como Djamila Ribeiro diz em Lugar de Fala,

“Collins aponta como é preciso aprender a tirar proveito desse lugar de outsider, pois esse espaço proporciona às mulheres negras um ponto de vista especial por conseguirem enxergar a sociedade em um espectro mais amplo. (…) Seria como dizer que a mulher negra está num não lugar, mas mais além: consegue observar o quanto esse não lugar pode ser doloroso e igualmente atenta também no que pode ser um lugar de potência.”

Considerando que o contributo do feminismo negro para a discussão epistémica convoca uma outra série de problemáticas, nomeadamente com aquilo que Grada Kilomba designa por “descolonizando o conhecimento”, o tema terá de ser desenvolvido em próximo artigo. Mas podemos fechar o entendimento de lugar de fala. Perante a difícil tradução de standpoint theory, os brasileiros encontraram esta deliciosa expressão que remete para o argumento que decorre daquela teoria:

  1. todos falamos a partir do lugar social que ocupamos (e que é politicamente construído, e não essencialista);
  2. a distribuição de poder na sociedade determina o valor da nossa fala, nomeadamente se participamos na produção do conhecimento dominante ou se somos socialmente excluídos;
  3. o facto de pertencermos a grupos sociais marginalizados torna o nosso lugar mais rico, mas temos de lutar contra a tentativa de exclusão.

2O perigo identitário

Este entendimento de lugar de fala permite compreender melhor a exigência de certos grupos para que sejam incluídos em determinadas áreas e atividades: como as medidas que discriminam positivamente grupos marginalizados e que permitem a sua participação em atividades de que estão normalmente excluídos (nomeadamente, científicas), sendo a sua inclusão não só uma correção social, mas também uma mais-valia social, na medida em que esses grupos trazem uma visão diferente sobre a realidade; mas também a chamada de grupos tradicionalmente excluídos para certos papéis no cinema ou no teatro, por exemplo, seria igualmente uma medida de correção justa.

E muitos de nós podem sentir-se predispostos a aceitar a benevolência destas medidas. Mas, na verdade, o argumento do lugar de fala apresenta um caráter perigoso: ele força-nos a adotar uma visão identitária da experiência humana. Sigamos novamente Djamila Ribeiro:

“[F]alar a partir de lugares é também romper com essa lógica de que somente os subalternos falem de suas localizações, fazendo com que aqueles inseridos na norma hegemónica nem sequer se pensem. Em outras palavras, é preciso cada vez mais que homens brancos cis estudem branquitude, cisgeneridade, masculinos.”

A ideia de lugar de fala é, neste sentido, um conceito profundamente ideológico, porque carrega em si o argumento de que a sociedade se organiza exclusivamente em lógicas de poder, que há, por essa razão, grupos dominantes e que temos a obrigação ética de lutar contra esse sistema. Assim, quando o ativismo identitário silencia um homem branco, não se trata realmente de silenciamento: estamos antes a aplicar novas regras ao espaço discursivo, sobretudo quanto àqueles que, nas palavras de Ribeiro, “ao persistirem na ideia de que são universais e falam por todos, insistem em falar pelos outros, quando, na verdade, estão falando de si ao se julgarem universais”.

Atacando a ideia de universalidade, a proposta identitária e o seu uso de lugar de fala revelam-se profundamente iliberais pelo que devemos ter cuidado ao subscrever este argumento. É que quando recusamos a ideia de que partilhamos uma humanidade comum para lá das nossas condições particulares, o que nos permite imaginar como será viver nos sapatos do outro, entramos num novo mundo. É nesse novo mundo que um “homem cis” não pode escrever sobre uma pessoa trans … a não ser que use leitores de sensibilidade, ou seja, a não ser que reconheça a sua identidade, o seu lugar de fala, e, ao fazê-lo, reconheça que precisa de ajuda para escrever sobre outras identidades.

Eliminará este novo mundo a Literatura-com-letra-maiúscula, como temem Afonso Reis Cabral ou Francisco José Viegas? Parece-me que sim: basta recordar que a Literatura-com-letra-maiúscula, a Literatura de Autor é um produto da época moderna liberal, que vive do compromisso entre universalidade e individualidade. E, por isso, um mundo identitário é um mundo sem Literatura. Mas, acima de tudo, é um mundo sem empatia, porque anula as ferramentas que nos permitem ser capazes de sentir a dor, mas também a felicidade do outro que é tão diferente de nós – tudo aquilo que a Literatura sempre nos deu.