Ainda se lembram quando o CHEGA teve que fazer noitada para saber se André Ventura era eleito deputado? Foi nas eleições legislativas de 2019, com 1,3%, 66.442 votos. Nessa altura, Ventura prometia ser o maior partido em oito anos – ainda faltam três. Se os partidos do regime continuarem a distrair-se com raminhos de coentros ou de hortelã, talvez a profecia se concretize.

As eleições nos Açores vieram mostrar que a impulsividade é má conselheira da prudência, não ilumina o caminho que é, simultaneamente, feito de experiência e bom senso. Em política nem tudo é tática, simulação ou jogada de corpo. Mas há quem se confunda ao não distinguir com clarividência os dois conceitos. Se a ideia é obrigar o PSD a procurar conforto nos deputados do CHEGA para sustentar o governo da AD, receio que o PS Açores se deixe seduzir pelo impulso e siga o pensamento de Pedro Nuno Santos, ao recusar um governo minoritário da AD nas eleições de 10 de março. Se o PS Açores o fizer, corre o risco de votar ao lado do CHEGA para inviabilizar o governo de Bolieiro – seria um paradoxo inadmissível.

No passado, uma maioria negativa – do BLOCO ao CDS –, derrubou um governo do PS, cada um com os seus argumentos. Agora o CHEGA é quem mais engorda com as crises políticas. A miopia dos que sacrificam a defesa do regime ao tacticismo partidário potenciará a gritaria antissistema convertendo-se numa mancha populista com grande expressão parlamentar. Se continuarem a alimentar a cobra com “leite açoriano”, ela crescerá o suficiente, como tem acontecido, e não terá pudor em ficar obeso à custa do PS e PSD. O seu objetivo é subir a escada do sistema, que diz combater, e instalar-se nos palácios. Ventura apressou-se a dizer que já estavam a trabalhar para encontrarem uma solução governativa para quatro anos, nos Açores, como se tivesse ganho as eleições – passou de dois para cinco deputados.

José Manuel Bolieiro deve recusar o abraço do urso, e o PS Açores viabilizar, sob condições, um governo sem o CHEGA. Respeitando a autonomia dos partidos, este é o momento em que os Açores podem e devem ser fiéis à sua matriz autonomista, sem ceder a derivas populistas.

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Para percebermos o crescimento do CHEGA nos Açores, basta lembrarmos as últimas legislativas, e o seu resultado no Baixo Alentejo, em zonas deprimidas, onde há problemas sociais graves e uma taxa de desemprego significativa. Onde persistem fragilidades, desilusão e desencantados com as políticas falhadas dos partidos do arco da governação, é aí que o discurso populista cresce como uma erva daninha, com a promessa de acabar com esse “tipo de gente que promete, mas não cumpre”, ao som da valsinha que embala a revolta e incentiva o ódio.

A transversalidade da retórica de Ventura, tal como aconteceu em Itália, é só o primeiro passo, o músculo das próximas eleições permitir-lhe-á ensaiar outras ações para a desafiar as instituições democráticas. Os jovens deste país, frustrados, sem saídas profissionais, imbuídos de generosidade e voluntariosos, encontram no populismo o eco onde ressoam angústias, frustrações e problemas. O populismo cresce onde os partidos do regime se esquecem dos cidadãos.

Convém lembrar o poema “A Nêspera” de Mário Henrique Leiria: Uma nêspera / estava na cama / deitada / muito calada / a ver / o que acontecia / chegou a Velha / e disse / olha uma nêspera / e zás comeu-a // é o que / acontece / às nêsperas / que ficam deitadas / caladas / a esperar / o que acontece.

A 10 de março Portugal pode ter um governo da AD ou do PS. Mas terá, também, uma extrema-direita com representação parlamentar reforçada. O que falhou nos últimos cinquenta anos em Portugal?