Perto dos 43 anos de existência o Serviço Nacional de Saúde (SNS) está a atravessar um momento de crise particularmente grave, sustentada na negação da evidência científica que tem como principal pilar a falta de clarividência estratégica, política, social e analítica. Infelizmente, muitos dos seus principais responsáveis, que ultrapassam o ser meramente político, insistem em tentar encontrar “bodes expiatórios” para justificar a falência de um sistema, cujo código genético está desde o seu início associado a três dimensões éticas que teoricamente permitem proteger a saúde das pessoas e, em particular, das mais frágeis: respeito pela dignidade humana, solidariedade e equidade no acesso a cuidados de saúde.

O SNS não está preparado para proteger, cuidar e tratar, os cerca de 10 milhões de portugueses. Sendo o seu objetivo primário essencial contribuir para combater as desigualdades sociais no acesso a cuidados de saúde, a verdade é que esta nobre missão só foi parcialmente alcançada. E a questão central que se coloca é sempre a mesma: que SNS querem os portugueses? E a resposta é idêntica nos vários estudos de opinião que foram realizados nos últimos anos. Os portugueses querem ter a garantia de acesso a cuidados de saúde de qualidade em tempo clinicamente aceitável.

Os médicos organizaram-se e ergueram o SNS para defender os doentes e o país. Por antecipação construíram a carreira médica e uma formação especializada de excelência, garantes da qualidade da nossa medicina, dos nossos indicadores de saúde e do desenvolvimento profissional contínuo. E no momento mais crítico pré-SNS, desenvolveram o Serviço Médico à Periferia, que permitiu fazer chegar os cuidados de saúde a todo o país. Um feito notável e um excelente ponto de partida.

O planeamento, organização e gestão do SNS ficou a partir daí a cargo dos políticos. Os anos foram passando, o SNS cresceu, mas nunca se libertou para poder atingir a maturidade plena. Começou-se a navegar à vista. A tomar decisões políticas para cumprir objetivos imediatos. A acumular dívidas e suborçamentos crónicos. A desvalorizar os médicos e os profissionais de saúde. A faltar ao respeito de quem todos os dias faz acontecer o SNS. A teoria da burocracia como processo de gestão tomou conta de todo o sistema. A visão da governação política impôs as suas regras e as suas amarras, desprezando a visão fundamental da governação clínica. A liderança política tentou sempre sobrepor-se à liderança clínica. As exigências de métricas numéricas per capita ultrapassaram o limite do aceitável, prejudicando a relação médico-doente e contribuindo para a elevada prevalência de síndrome de burnout, sofrimento ético e violência contra médicos e profissionais de saúde. E não souberam ou não quiseram implementar uma política de saúde centrada na qualidade dos resultados, nos incentivos, na motivação, no respeito e na valorização dos médicos e profissionais de saúde, esquecendo muitas vezes a importância do sistema de saúde como um todo, e a mais-valia de um novo modelo de gestão que permitisse modernizar e transformar o SNS, tornando-o mais competitivo, para dar a resposta adequada à saúde dos portugueses. Uma visão míope, castrada pelo poder institucional das Finanças, que não honra a memória de quem construiu o SNS nem permite a evolução natural para um serviço público de Saúde devidamente capacitado e em estado de prontidão para responder aos desafios presentes e futuros da saúde dos cidadãos.

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De forma resumida ficam algumas sugestões que considero fundamentais:

  • Definir uma estratégia e um plano para a política de saúde em Portugal, através da análise e do estudo do sistema de saúde português e pensar hoje a saúde para 2040;
  • Envolver os médicos nas decisões sobre o sistema de saúde, reforçando a importância da liderança médica e do trabalho em equipa;
  • Combater o desperdício e as ineficiências na gestão de recursos (através de uma boa governação clínica e ferramentas de gestão específicas);
  • Financiar e investir adequadamente nas necessidades reais dos portugueses, implementar lei de meios e orçamentos plurianuais, para garantir estratégias definidas para a Saúde e capacidade de resposta;
  • Implementar uma reforma hospitalar que inclua uma nova gestão das unidades de saúde, que integre algumas regras do setor privado, centrada na autonomia e flexibilidade de gestão, na governação clínica e na responsabilidade sustentada em orçamentos reais adaptados às necessidades da população de referência.
  • Respeitar e dignificar os médicos e os profissionais de saúde, valorizar a carreira médica e a formação, com salários justos de acordo com a intensa formação no ensino superior, conhecimento, responsabilidade e competências adquiridas;
  • Realizar concursos públicos bianuais para todos os graus e todas as categorias com progressão real na carreira e possibilidade de atingir o topo da mesma;
  • Reintroduzir o regime de trabalho em dedicação exclusiva opcional devidamente remunerado;
  • Criar linha verde de apoio a médicos e profissionais de saúde para prevenção e tratamento de burnout, sofrimento ético e violência física e/ou psíquica;
  • Criar incentivos para trabalhar nas zonas mais carenciadas e desfavorecidas;
  • Desenvolver a aposta em cuidados de saúde e medicamentos de proximidade;
  • Centrar os serviços de saúde no doente/cidadão;
  • Duplicar o investimento nos pilares do sistema de saúde: literacia e educação em saúde e prevenção da doença;
  • Valorizar a investigação através da carreira médica e outras carreiras;
  • Aumentar o investimento na investigação, inovação e qualidade, captando, por exemplo, ensaios clínicos nacionais e internacionais, com todos os benefícios que podem ter para os doentes e para a economia do país;
  • Implementar a transição e transformação digital na saúde: instituir o processo clínico único, equipar as unidades de saúde para garantir telemedicina de qualidade, eficaz, segura e protetiva, expandir a medicina à distância e a Inteligência Artificial;
  • Mitigar tarefas administrativas e burocráticas ou transferi-las para outros profissionais e simplificar processos e procedimentos informáticos, dando mais tempo aos médicos para exercerem medicina;
  • Acelerar e adaptar a reforma dos cuidados de saúde primários, libertando os médicos de família de funções burocráticas e administrativas, implementando mais USF modelo B e valorizando os médicos que trabalham em UCSP, para que todos os utentes /doentes possam ter acesso a médico especialista e equipa de família;
  • Completar a reforma da saúde pública, reforçar os meios e equipamentos necessários para que os médicos de saúde pública se centrem na sua missão essencial, libertando estes médicos de tarefas paralelas que os impedem de exercer a sua atividade em pleno;
  • Integrar cuidados de saúde entre hospitais e centros de saúde (vias verdes para doenças graves e comunicação digital entre médicos para evitar circulação desnecessária de doentes);
  • Aumentar a capacidade de resposta, integrar e simplificar acesso a cuidados continuados e paliativos;
  • Promover o aumento da atividade em cirurgia ambulatória e cirurgia de um dia. Utilizar ferramentas de gestão modernas e específicas para a gestão crítica e otimizada de blocos operatórios, internamentos, consultas externas e internas, serviço de urgência.
  • Reformar o serviço de urgência e emergência médica envolvendo a educação em saúde, o sistema de triagem, o INEM, os hospitais, os cuidados de saúde primários e a gestão crítica de doentes crónicos (através dos médicos gestores do percurso do doente no SNS – médicos de família e de medicina interna). Neste âmbito, implementar uma campanha nacional “serviço de urgência seguro” para educar os cidadãos na utilização dos serviços de saúde;
  • Cooperar de forma mais regulada, fiscalizada e eficiente com os setores privado e social;
  • Instituir uma articulação sólida entre os ministérios da Saúde e da Segurança Social;
  • Desenvolver um plano com objetivos para atenuar de forma significativa as desigualdades sociais em saúde e implementar a descentralização de algumas competências específicas devidamente financiadas nas Câmaras Municipais.
  • Considerar a saúde como parte integrante da segurança nacional e preparar estruturas capazes de responder a situações emergentes em articulação com a UE (reserva estratégica e estado de prontidão);
  • Avaliar a pandemia (aspetos positivos, negativos e lições), preparar o SNS e o sistema de saúde para responder a desafios inesperados e súbitos.

Estas constituem apenas algumas das medidas que podem dar mais vida e saúde ao SNS e aos portugueses, e contribuir para resolver a prioridade nacional de recuperar e transformar o SNS, devolvendo a motivação e confiança aos médicos e profissionais de saúde.