O primeiro-ministro anunciou que é objetivo do governo que o peso dos salários no PIB seja pelo menos idêntico ao da média europeia, passando de 45% para 48%, tendo os valores atuais como referência. Segundo foi noticiado, isto implicaria um aumento de 20% no salário médio no nosso país ao longo da legislatura. Com isto, pretende-se mais justiça.

É de saudar que haja objetivos de política salarial, e nem têm de ser iguais para o setor público e para o setor privado. O que interessa é que se perceba bem onde queremos chegar. Ora, não é o caso, salvo melhor opinião.

Desde logo, o objetivo de base é alinhar um indicador da nossa economia, o peso dos salários no PIB, com o indicador médio europeu homólogo. A ideia parece boa. Toda a gente gosta da comparação com a média europeia. Esperemos só que alguns países sejam mais criativos do que nós e tenham objetivos mais interessantes. Se não, daqui a quatro anos estão todos iguais à média e, a partir daí, sem nada para fazer.

Por outro lado, ter como referência o peso dos salários no PIB revela a tradicional preocupação com a redistribuição do bolo, independentemente do seu tamanho. De um lado o trabalho, do outro o capital. Não tem mal nenhum, mas pode ser uma descrição demasiado simples da situação de muitas pessoas (a maior parte?), que são proprietárias de alguma coisa, e interessadas na sua valorização. Dir-se-á que isso não tem que ver com os salários. Certamente! Mas pode ter a ver com a justiça, que parece ser o fim último do exercício.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

No entanto, será no que diz respeito aos aumentos salariais de 20% que os desafios de interpretação daquilo que o primeiro-ministro disse parecem maiores.

Em primeiro lugar, este aumento de 20% parece ser instrumental, de acordo com o que se pode ler na comunicação social. O objetivo final parece ser garantir que o peso dos salários no PIB seja igual ao da média europeia. Sendo assim, com a inflação que se antevê, os aumentos salariais nominais devem ter de ser superiores a 20%. Se não for o caso, e os dois objetivos forem independentes, ficava bem o governo dizer qual é o prioritário.

Em segundo lugar, os trabalhadores não são todos iguais. Uma das grandes transformações nos mercados de trabalho ocidentais nos últimos 40 anos relaciona-se com a separação entre os interesses dos trabalhadores mais qualificados e os dos não qualificados. Quem perdeu com a revolução das tecnologias de informação e com a globalização que lhe esteve associada foram sobretudo os trabalhadores tidos como não qualificados, relativamente às necessidades tecnológicas. Outra divisão é entre trabalhadores com contratos de trabalho por tempo indeterminado e trabalhadores com contratos de trabalho a termo certo, já sem falar dos trabalhadores em regime de trabalho temporário. O que significa que o aumento da desigualdade entre trabalhadores é motivo de tensões sociais, ainda antes da divisão do bolo com o capital – onde, aliás, também há realidades muito diferentes entre si.

Como a produtividade se relaciona com a qualificação, um aumento médio salarial de 20% pode vir a conseguir-se com um aumento salarial dos trabalhadores qualificados. O primeiro-ministro estaria porventura a pensar neste caso, pois, segundo a comunicação social, fez referência à necessidade de se fazer com que a “geração mais qualificada de sempre” seja também a “mais realizada de sempre”.

Mas pode não ser o caso. Um aumento do peso dos trabalhadores qualificados na força de trabalho, sem aumento dos seus salários também aumenta o salário médio. Em cada posto de trabalho ganha-se o que se ganhava antes, mas aumenta o número daqueles postos de trabalho em que se ganha mais. Não é tão bom, mas o crescimento económico também se faz destas coisas. Ou seja, o mesmo objetivo formal pode ser conseguido com resultados económicos e sociais muito diferentes.

Em síntese, anunciar que se pretende um aumento de salários é uma bela intenção. Só falta mesmo perceber o que se quer dizer com isso. Recentemente, o governo aprovou alterações à legislação laboral, presumivelmente integradas nos objetivos anunciados. Seguir-se-ão outras medidas? Como se vive um momento de grande intensidade na elaboração de estratégias, para acudir às múltiplas Agendas em curso, talvez fizesse sentido haver um documento indicativo, de clarificação e com uma previsão de meios para se atingirem os objetivos anunciados para os salários. Uma alternativa a isto é manter a ambiguidade nos objetivos e nos meios e ir em regime de navegação à vista. Dada a delicadeza política do tema parece-me que esta segunda alternativa é a mais provável. Poderemos nunca saber onde o governo agora quer chegar, mas daqui a 4 anos não deixaremos de ver a que sítio chegámos.