Que região é esta, tão bonita por fora e tão controversa por dentro. Que se mostra requintada, qualitativa, única, imperdível, mas que ao mesmo tempo se desencontra, como uma malha de tricot em que se puxa uma linha e todos os outros fios se desarticulam. Ela é na verdade uma região rústica, pura, de receitas despretensiosas e ingredientes rudes com sabores divinais. É uma região de pessoas que não têm medo – nem do calor abrasador, nem do frio de gelo, nem dos bichos, nem do silêncio, nem da dor… Que não fogem do trabalho e antes mergulham nele para tirar da terra o pouco rendimento que ela dá, porque sabem quão especial é o resultado. Uma região de estradas tortas que levam a sítios deslumbrantes, de caminhos de cabras e de pedras de onde tantas vezes não conseguimos sair. De aldeias desarranjadas e desordenadas, mas que nem parece importar – porque aquilo que as envolve já enche as medidas da beleza. Terras onde se diz bom dia na rua, ao conhecido e ao desconhecido, e onde se partilha o que se tem, mesmo que seja pouco.

Hoje em dia, esta terra quer mostrar a quem chega mais do que este acolhimento espontâneo e simples, um hotel confortável, uma piscina aquecida com vista para o rio, um vinho extraordinário, um prato elegante, uma viagem rápida e sem grandes curvas (quando possível). Quer mostrar que é grandiosa e competitiva, única e produtiva. O que nem sempre é verdade. São dois mundos muito diferentes. Mas será que um vive sem o outro? Que o conforto e o requinte são possíveis sem a gente forte e corajosa para o trabalhar? Que os pratos elegantes seriam os mesmos sem os ingredientes rudes? Que a vista deslumbrante ainda existiria se o caminho para lá chegar não fosse de cabras? Que o vinho extraordinário seria igual se não viesse de uma vinha torta, pouco produtiva e duramente granjeada? Então porquê tentar suavizar o que não é suave? Ou ignorar o valor daquilo que sustenta a região?

Os alertas são muitos, e quem cá vive, sente. Mas parece que é mais importante debruçar-se na imagem para fora do que nos problemas para dentro. Jovens há poucos, serviços vão sendo cada vez menos e piores, e trabalhadores – bem, esses são uma espécie em vias de extinção. Os corajosos do Douro envelhecem e ninguém se lhes segue. Os trabalhadores agrícolas são substituídos por emigrantes, os professores e médicos sucedem-se em catadupa (fixar-se aqui é que não!), começa a chegar o medo do frio, do calor, dos bichos, do silêncio… E aqueles que cá ficam, seja por paixão ou porque ainda encontram razão de investimento, vêem-se em maus lençóis para arranjar um empreiteiro que lhes faça uma obra, um técnico que lhe repare os electrodomésticos, ou um médico que acompanhe a sua família por mais de um ano.

Não há dúvida de que o grande motor económico da região de Trás-os-Montes e Alto Douro, e do vale do Douro em concreto, é o vinho. As empresas do sector têm tido um papel fundamental em não deixar que a atratividade se perca, mas ao mesmo tempo também não oferecem um retorno pelas uvas que torne a exploração da vinha interessante. O filho do velho agricultor que herdou a sua vinha – largará o emprego na cidade por uma idílica vida no campo? Provavelmente não, se o duro trabalho agrícola não o compensar economicamente. Deixo outra curiosidade para reflexão – sabiam que um jovem agricultor, empresário em nome individual, pode não ver os seus rendimentos agrícolas contabilizados para efeitos de crédito à habitação? Confirmo por experiência. E será que alguma instituição bancária concederia um crédito (automóvel ou habitação suponhamos) a alguém que viva exclusivamente de rendimentos agrícolas? Pois, sendo estes rendimentos naturalmente variáveis, possivelmente não. Torna-se difícil que uma vida assim se torne apelativa para um jovem, que não traga consigo ainda a paixão pela terra e a vontade de a transformar em algo cada vez melhor.

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Já pensaram? O Douro – região por excelência dos vinhos portugueses, bandeira internacional dos nossos vinhos e da nossa paisagem. Mas que não está a evoluir no sentido de se valorizar, rentabilizar, nem de reter o seu capital humano. O investimento na região, à parte das grandes empresas com estrutura já montada e capital de escala, decresce. O que nos espera então? Empresarialização absoluta? Descaracterização da região? Talvez, até que a parte mais penalizada da cadeia de valor dê o Grito do Ipiranga, por sentir cada vez mais na pele a dificuldade em conseguir que os ganhos cubram as despesas.

Peguemos no caso do Vinho do Porto, o nosso vinho com mais história e prestígio. Através de um benefício que é historicamente atribuído à produção de uvas para estes vinhos (que varia de acordo com as condições de plantação da vinha e onde esta está localizada) a região vai sobrevivendo. É o único pagamento que pode oferecer alguma perspectiva de compensação dos gastos crescentes que os viticultores têm em granjeio e fatores de produção. Este ano, apesar de ser estimado um aumento de produção de 10% na região (segundo a ADVID) e de os viticultores sofrerem ainda com a inflação e o aumento do custo dos fatores de produção, o benefício foi reduzido em 12 mil pipas, devido à queda nas exportações. Esta queda vê-se em mercados como França, que representa uns pesados 28,5% das vendas em caixas de 9L de Vinho do Porto, e que cai cerca de 10% face ao ano anterior (dados IVDP). Extraordinário o impacto que tem apenas este mercado, onde uns esmagadores 93% do volume são vinhos sem designativo especial (ou vinhos de entrada, entenda-se, com preço médio por garrafa este ano a rondar os 3,80€/litro). Ou seja, a queda das exportações está fortemente assente em vinhos de baixo preço. Um manifesto recente, assinado por personalidades ligadas ao Vinho do Porto da região – “O Douro Merece Melhor” – traz estas questões para cima da mesa. Diz-nos que nos últimos 20 anos temos assistido a uma queda de quase 25% no volume de vendas de Vinho do Porto. Ao mesmo tempo, as vendas de DOC Douro (vinhos tranquilos) têm vindo a crescer significativamente no mesmo período. O crescimento do DOC Douro não é problema – problema são os preços que se praticam também para estes vinhos, e o facto de eles não trazerem rentabilidade ao viticultor. Nada mesmo, quando comparado com uma pipa (750 kg) de uvas vendida para Vinho do Porto. A diferença chega a ser de metade do valor ou menos.

Fará então sentido um sistema de benefício atribuído ao Vinho do Porto, quando este cai em vendas, dificultando que este “benefício” se justifique? Ou será que o problema reside numa excessiva dependência de um segmento de mercado de Vinho do Porto de baixo valor, que não valoriza o produto nem lhe traz estabilidade? Talvez a solução passe por valorizar as uvas para DOC Douro de uma forma mais justa. Não haverá certamente um só caminho, uma só solução, nem uma ideia certa no meio de tantas outras. Mas o que não há dúvidas é que este é um problema grave que tem de ser discutido, uma vez que compromete a Sustentabilidade da região, no verdadeiro sentido da palavra. Não apenas a sustentabilidade ambiental e natural, mas a sustentabilidade social e económica, que assegura que este património seja protegido e transmitido de geração em geração. Se esta duas últimas não forem asseguradas, de pouco serve falar nas primeiras, uma vez que não haverá quem trabalhe por elas. E os ideais de Sustentabilidade ficarão a falar consigo mesmos.

É de realçar também que esta é a única região vínica regulada por um instituto público, sendo que todas as restantes são reguladas por comissões vitivinícolas regionais de carácter privado. Estas nada mais são do que comissões interprofissionais com a responsabilidade de fiscalizar a produção de cada região, tanto a nível vitícola como da vinificação. Não é de espantar que o peso de uma instituição pública atrase drasticamente os processos de regulação e fiscalização de uma região complexa como do Douro. Com a expectável morosidade de aprovar, reprovar ou refutar qualquer procedimento ou decisão. Será isso desejável?

Hoje larguei o discurso optimista que tentava promover. Há de facto alturas em que ele é mais forte e outras em que fraqueja.

Mas o mais importante é que se coloque o tema em cima da mesa e que se desenhem soluções. Afinal, o que é que o Douro merece?

Isabel Abreu Lima é Gestora de Relações Públicas na Aveleda S.A. e jovem agricultora. Licenciada em Biologia, Mestre em Viticultura e Enologia, trabalhou na produção de vinhos do Douro e da Califórnia, enveredando mais tarde pelo ramo da comunicação e estratégia de marcas. Com uma pós-graduação em Gestão de Marketing, aprofundou a sua experiência nesta área, sempre ligada ao sector dos vinhos. Hoje, para além das Relações Públicas, tem o seu próprio projeto agrícola na região do Douro e ajudou a fundar o Conselho Consultivo dos Jovens Agricultores da CAP. Faz parte do Global Shapers Lisbon Hub desde Junho de 2020.

O Observador associa-se ao Global Shapers Lisbon, comunidade do Fórum Económico Mundial, para, semanalmente, discutir um tópico relevante da política nacional visto pelos olhos de um destes jovens líderes da sociedade portuguesa.  O artigo representa a opinião pessoal do autor, enquadrada nos valores da Comunidade dos Global Shapers, ainda que de forma não vinculativa.