Foi várias vezes invocado, como justificação para o investimento público na Jornada Mundial da Juventude, o seu suposto retorno económico com base nas despesas que seriam realizadas pelos peregrinos. Parece verificar-se agora que tais despesas foram inferiores ao previsto, inferiores às que são habitualmente realizadas pelos turistas, sendo que, por isso, elas não terão compensado a redução das despesas dos habituais turistas durante os dias dessa Jornada. São conclusões ainda não definitivas, que deverão ser completadas com outras, como as relativas às receitas que no futuro poderão resultar da promoção de Lisboa e de Portugal que resulta da presença dessas centenas de milhar de jovens e as relativas aos benefícios resultantes de investimentos que permanecerão muito para além da Jornada e a que esta serviu apenas de pretexto inicial.
Sempre me pareceu algo exagerado o cálculo da previsão das despesas efetuadas pelos peregrinos da JMJ, como se estas fossem equiparáveis às dos turistas habituais. Mas isso mesmo é revelador de um facto que me parece muito positivo. Estamos habituados a receber turistas de vários países, mas não certamente do Sudão, da Zâmbia, da Costa Rica ou da Papua-Nova Guiné. Esses peregrinos não representavam uma minoria privilegiada (tendencialmente consumista), mas (de forma certamente limitada e na medida do possível) todos os povos da Terra, ricos e pobres. Muitos deles visitaram a Europa pela primeira vez e talvez nunca voltem a visitá-la. Não o fizeram com os seus próprios recursos, mas beneficiaram de várias formas de solidariedade: da própria organização da Jornadas (que para tal pediu um contributo especial a todos os inscritos), das Igrejas de proveniência e também de algumas paróquias portuguesas (a minha comprometeu-se a financiar a participação de dois jovens do Brunei, um país para muitos desconhecido e situado perto da Malásia). Os que o fizeram com os seus recursos não eram particularmente abonados e por isso limitaram as suas despesas ao essencial. Sem os apoios públicos de que beneficiou a organização da JMJ, muito menos acessível teria sido a tão alargada participação desses peregrinos mais pobres. Parece-me de salientar este aspeto, que contrasta com a tendência habitual entre nós de querer atrair sobretudo turistas e residentes estrangeiros mais endinheirados (no que parece ser uma injusta “opção preferencial pelos ricos”).
O que pode justificar os apoios públicos à realização da Jornada Mundial da Juventude nunca seria, de qualquer modo e sobretudo, o seu retorno económico. Desde logo porque «nem só de pão vive o homem».
Há uma base legal para esses apoios (não certamente ligada a alguma forma de retorno económico) que bem se explicita na Lei da Liberdade Religiosa e é expressão daquela laicidade cooperativa (bem diferente do laicismo, hostil à religião) que caracteriza o nosso ordenamento jurídico constitucional e legal. O princípio da cooperação entre o Estado e as comunidades religiosas está consignado no artigo 5.º dessa Lei nestes termos: «O Estado cooperará com as igrejas e comunidades religiosas radicadas em Portugal, tendo em consideração a sua representatividade, com vista designadamente à promoção dos direitos humanos, do desenvolvimento integral de cada pessoa e dos valores da paz, da liberdade, da solidariedade e da tolerância.»
Penso que estamos perante um bom e frutuoso exemplo desta cooperação.
Alude a definição desse princípio da cooperação ao «desenvolvimento integral de cada pessoa». Pois bem, eu próprio, e muitas pessoas da minha geração, que participámos nas primeiras Jornadas Mundiais da Juventude, nos tempos de São João Paulo II. podemos testemunhar como elas foram marcantes nas nossas vidas, nos ajudaram a descobrir a nossa vocação, o sentido de vida que até hoje nos guia. Isso mesmo poderão dizer os jovens que participaram nesta Jornada. (Há já inquéritos que procuram averiguar até que ponto assim poderá suceder). Trata-se de um sentido de vida radicado na fé cristã e na pertença à Igreja Católica – há que ser claro a esse respeito.
Sendo inegável essa raiz cristã a católica desse testemunho, o que sensibilizou pessoas de todos os quadrantes, crentes e não crentes, foi o testemunho de autêntica fraternidade universal que esta Jornada deu a Portugal e ao mundo. Um testemunho a que desta vez, de forma algo inovadora, se associaram cristãos de outras denominações e crentes de outras religiões. Uma das mais comoventes imagens que haveremos de reter na memória é a da multiplicidade de bandeiras dos mais diversos países, das mais familiares às mais desconhecidas, de países mais ou menos longínquos, ricos e pobres. Mais até do que o número de participantes, foi esta imagem de universalidade que a todos impressionou. Esta multiplicidade de povos e bandeiras refletia um clima de alegria, paz e fraternidade. O orgulho nacional de quem expunha a bandeira do seu país não era motivo de divisão ou conflito. Um grande contraste com o que se verifica quase sempre em jogos de futebol, em que a separação de claques se impõe como elementar medida de segurança. Recordo, por exemplo, a frase escrita nas camisetas dos peregrinos espanhóis, referida aos portugueses: «somos vecinos de al lado, somos hermanos». Este testemunho de fraternidade universal é da maior relevância no mundo atual, em que ressurgem «nacionalismo fechados, exacerbados, ressentidos e agressivos» (expressões da encíclica Fratelli tutti, do Papa Francisco). Este testemunho e estas imagens também impressionaram o Papa, que afirmou, na primeira audiência depois do seu regresso a Roma: «a JMJ mostrou a todos que outro mundo é possível: um mundo de irmãos e irmãs, onde as bandeiras de todos os povos flutuam juntas, lado a lado, sem ódio, sem medo, sem fechamentos, sem armas!». Nessa linha, afirmou também o Papa no discurso que proferiu no Centro Cultural de Belém: «Estou feliz por estar em Lisboa, cidade do encontro que abraça vários povos e culturas e que, nestes dias, se mostra ainda mais universal; torna-se, de certo modo, a capital do mundo, a capital do futuro, porque os jovens são o futuro»
As autoridades policiais não estão certamente habituadas a multidões tão pacíficas e ordeiras, que as aplaudiam em reconhecimento do seu trabalho. Muitas contrariedades, como o calor, o cansaço ou a precariedade dos alojamentos (só nessas condições de precariedade foi possível uma acessível e tão alargada participação de jovens), poderiam criar revolta e estragar o ambiente de festa que se vivia. Mas o espírito da Jornada, o que é próprio de uma peregrinação (diferente do de uma viagem turística), permitiu superar essas dificuldades. Num comboio sobrelotado e parado há mais de meia hora, com um calor tórrido, vi jovens que reagiam a essa situação com cânticos de alegria em várias línguas. Esta invulgar postura também foi por muitos notada, também ela fez parte do testemunho.
Para este testemunho contribuíu decisivamente o trabalho dos milhares de voluntários, que (alguns durante vários meses, outros durante os dias e noites da Jornada) não pouparam esforços (prescindindo até da participação nos principais eventos do programa) para acolher da melhor forma os peregrinos. Contributo decisivo foi também o dos milhares de famílias de acolhimento, que em sua casa receberam como se fossem da sua família pessoas até então desconhecidas. Esse acolhimento começou (e aí se revelou até particularmente refinado) nos “Dias nas Dioceses”, os dias anteriores aos da Jornada, em que alguns dos peregrinos se espalharam pelas cidades, vilas e aldeias de todo o país. Já li extraordinárias mensagens de agradecimento de bispos de vários países por todas essas formas de acolhimento.
Este testemunho de fraternidade universal, da maior relevância para o nosso país e no mundo atual, não representa uma experiência de poucos dias que rapidamente é esquecida. Trata-se de uma experiência marcante, que permanecerá para sempre na memória de quem a viveu por dentro, e também de quem a ela assistiu e por ela foi tocado. Afirmou o Papa Francisco na oração do Ângelus, no último dia da Jornada: «E obrigado a ti, Lisboa, que permanecerás na memória destes jovens como “casa de fraternidade” e “cidade dos sonhos”». Os jovens que nos visitaram (muitos que de Portugal pouco sabiam) talvez nunca mais nos visitem como turistas. Certamente reterão na sua memória as belezas do nosso país e as riquezas da nossa cultura (estas bem visíveis no que têm de melhor nos momentos artísticos do programa da Jornada). Mas reterão sobretudo esta vivência de Lisboa (e, para alguns, também de outras localidades do nosso país) como “casa de fraternidade” e “cidade dos sonhos”.
É este em meu entender, o mais valioso retorno da Jornada Mundial da Juventude.