Num curioso acesso de franqueza, e em oposição à hipocrisia que caracteriza a sua classe, um fidalgo da Corte de Lisboa escreveu num jornal, preto no branco – deixando em aberto se se trata da nação ou, mais provável, do terceiro estado, vulgo a classe baixa – que o povo português não presta, implicando que é desmazelado, manhoso, espertalhão, preguiceiro e mais. Que nada adiantam os esforços e as excelentes qualidades dos vários governos que se esforçam por levá-lo ao bom caminho, o povo português continua alarve, desleixado e sujo, muito à semelhança do que – conta o fidalgo – o seu progenitor tinha constatado nos árabes, durante uma visita aos colonatos em Israel.
Felizmente, no seguimento de tão desprezíveis qualidades, o fidalgo reconhece ao Zé duas que não somente o distinguem, mas causam inveja aos mais povos da Europa que, para seu mal, não possuem como ele “a capacidade inventiva e o gosto pela vida”.
Implica assim o fidalgo que trabalhar duro exclui a alegria de viver e dificulta a “capacidade inventiva”, como delicadamente nomeia o chico-espertismo. E que os governos se esforçam por melhorar o seu destino, tomam medidas acertadas e generosas, mas o povo português continua indiferente a essas boas intenções, prefere o chiqueiro e deixa-se ir ao deus-dará.
O texto que refiro escreveu-o o fidalgo no passado Agosto, e embora me tivesse então irritado pelo raciocínio e o desdém pelos que, com dificuldade extrema, lutam para sobreviver num país de obscenas desigualdades, achei avisado não ceder ao mau humor, dar tempo ao tempo, pois este se encarregará de que, num futuro não muito distante, o fidalgo se veja a reconsiderar a pachorra e o desleixo que atribui ao povinho, e uma manhã acorde a perguntar-se que barulho é aquele que se ouve na rua.
Porque barulho vai haver, e nem ele nem a sua casta vão gostar, pois os ajustes de contas raro se fazem em paz e sossego, embora seja improvável que se repita o folclore dos Cravos, no qual o Zé não foi visto nem achado, e os “capitães” de então, promovidos a generais, há muito saíram do palco pela esquerda baixa, à semelhança dos actores com papel irrelevante, deixando a nação entregue à quadrilha que dela se apoderou e gere como coisa sua.
Mas ninguém se incomode ou assuste, que por mim sou mais para a não-violência de Ghandi do que para motins de “desprezíveis”, e as preocupações que sinto, tanto podem ser resultado da crença que mantenho nas profecias do Bandarra, como de desvarios de uma longa vida a escrever ficção.
De qualquer modo, atentando nisto, naquilo, naqueloutro, por muito enraizada que julgue a minha esperança de sossego e harmonia, não consigo descartar quanto me preocupa o que vou sabendo de misérias anunciadas, a ponto que quase me vejo capaz de encolher os ombros às traficâncias dos senhores políticos, que de bélicas pouco ou nada têm. Todavia, perco o sono a imaginar o que pode acontecer num país onde o assalto a um paiol é encarado como sem gravidade de maior, o contrabando pelas tropas de élite idem, a corrupção na Marinha, na Força Aérea “será investigada”. E para chorar sem lágrimas sobre a Justiça, tem-me bastado seguir este folhetim que, tivesse eu menos anos e tempo de sobra, de certeza me tentaria a aproveitá-lo para argumento de uma telenovela picaresca.
Chegará tudo isso para afligir? Devia chegar, como bem se dispensava a profecia do sapateiro de Trancoso, a de que o pior cabe sempre aos que, íntegros, não têm nem desejam lugar à manjedoura. Infelizmente, dá-se o caso que esta, mais que abonada pela generosidade dos que ignoram o que seja a alegria de viver, dá de sobra para os que a ela estão abancados, e para aquele a quem já deram sinal de que tenha as malas prontas, porque mais dia menos dia a hora do retorno vai soar.
Hora gloriosa será, porque foi tudo engano, injustiça, ciumeira, trafulhice e traição de vassalos que lhe invejavam o poleiro. E o Zé, que tem outras, talvez até mais refinadas qualidades do que as que o fidalgo lhe atribui, e raro se engana de que lado sopra o vento, pronto encherá a rua aos gritos de “Sócrates! Amigo! O povo está contigo!”
Bizarro? Improvável? O futuro o dirá. Pode até ser que o fidalgo mereça desculpas. No país irmão Lula volta a ser presidente.