Ouviram? Foi o som de uma promessa a quebrar-se. Outra vez, embora de forma diferente. Parecia que era desta que a geração de ouro belga iria até ao fim. Cinco jogos, cinco vitórias. A recuperação heróica contra o Japão. A primeira parte de luxo contra o Brasil. A segunda parte de resistência e Courtois. Não havia dúvidas. Só faltava uma última curva, azul e enganadora. Uma curva onde a geração de ouro de Portugal se despistou uma vez, um muro onde se estampou novamente, numa altura em que do ouro original só restava Figo e algumas memórias brilhantes. É que a França tem esse talento para esvaziar os sonhos dourados dos outros nas meias-finais. Reparem: esvaziar. Não é rebentar. É mesmo ir esvaziando lenta e cruelmente os sonhos alheios.
No jogo de hoje, a Bélgica entrou brasileira, a dominar com a bola no pé. Dava impressão de estar a enredar o adversário numa teia. O jogo era como que o prolongamento das partidas anteriores. Os belgas jogavam como quem acabou de eliminar o Brasil num encontro épico. Os franceses jogavam como quem acabou de despachar o Uruguai num jogo deliberadamente morno. A diferença é que a Bélgica demorou a perceber que estava num jogo diferente, enquanto a França sabia desde o início que o jogo era outro. Eis outra arte dos gauleses, pelo menos destes: fazem-se de mortos e, no último momento, escapam à ferroada fatal. Mérito de França e de Lloris, que fez uma defesa de importância gordonbanksiana. Demérito dos belgas, a pairar como vespas, a picar como borboletas.
As gerações de ouro, como a belga, têm destas coisas. Na hora h, não sabem matar. Aos poucos, começaram a morrer, a perder forças, discernimento, clareza de raciocínio. Então sofreram um golpe tremendo e, por muita que fosse a confiança no talento dos jogadores, percebeu-se que só por milagre poderiam restabelecer-se. Nos minutos após o golo de Umtiti, no início da segunda parte, a França cresceu, começou a parecer-se mais com o monstro que é. A Bélgica minguou. Estar a perder 1-0 com esta França é muito pior do que estar a perder 2-0 com o Japão. Os jogadores belgas sabiam disso melhor do que ninguém e jogaram como se quisessem que toda a gente soubesse que eles sabiam.
Hazard, um destro com génio de esquerdino, andava às voltas sem sair da lâmpada. De Bruyne, a bússola da equipa, desmagnetizou-se. Lukaku era servido como um português numa esplanada algarvia em Agosto. Do outro lado, Varane reinava, imperial. Kanté continuava a sua saga de recuperação de bolas. Griezmann descia para pegar no jogo. E Giroud descobria a sua verdadeira vocação como trinco. O jogo seguia para o final. Da perspectiva dos belgas, era uma marcha fúnebre a avançar com uma lentidão mais sádica do que respeitosa. O som da inevitabilidade, como diria Mr. Smith. Um som tão medonho e inelutável que, no jogo dos quartos-de-final, pôs um gladiador como Giménez a chorar muito antes do derradeiro apito do árbitro. Para os franceses era o som de uma eficiência com o seu quê de cruel pois dá ao adversário a ilusão, pelo resultado, de que esteve muito perto de os bater. Mera ilusão.
Nós sabemos como custa. Em 2000, consolámo-nos com a história da “mão” de Abel Xavier. Em 2006, aceitámos o destino com uma resignação, um estoicismo, que, à sua maneira imperfeita, foram heróicos. Recuámos sem azedume e quis o mesmo destino que, dez anos depois, servíssemos a mais fria das vinganças por meio de um guião tão perfeito que só podia ser fortuito. Os belgas saíram sem aquele estrondo da humilhação que concede aos adeptos o prazer possível do desabafo e da crítica selvagem. Saíram depois de terem feito um grande campeonato, de terem provado que são uma grande equipa e não apenas um conjunto de jogadores talentosos e com a consciência tranquila de quem sabe que, por vezes, tudo isso é insuficiente para ganhar um campeonato do mundo. Sobretudo quando o asfalto da última curva antes da glória está pintado com o azul traiçoeiro da França.