Nas vésperas do Mundial, adivinhava-se uma catástrofe de proporções tolstoianas para os russos. Não tanto para a organização do evento, mas para a própria selecção. Havia quem desconfiasse da capacidades dos anfitriões saírem com vida de um grupo com Arábia Saudita, Egipto e Uruguai, o que não era propriamente um sinal de optimismo. Com salários principescos, acomodados num campeonato medíocre (a liga russa) e sem grande vontade de arriscar uma carreira no estrangeiro, os jogadores russos viram-se perante uma tarefa demasiado exigente para os seus hábitos ociosos: não envergonhar o país.

Com a equipa preste a entrar em campo, os jornais de Moscovo traçavam o mais sombrio dos cenários: “Velha e inexperiente: porque é que a selecção russa está condenada ao fracasso”, rezava uma manchete num tom que ninguém classificaria de patriótico. O único russo com alguma fé devia ser Stanislav Cherchesov, o seleccionador. Ainda antes do torneio começar, um jornalista dinamarquês perguntou-lhe se tinha alguma mensagem para o povo russo. Cherchesov sorriu: “Você teria dificuldades em perceber os labirintos da alma russa.” O que ele disse depois não interessa. Aliás, nem sequer interessa o sentido da resposta. O que conta é a referência à alma russa, essa ideia viva e cheia de profundezas, de mistérios, de abismos, de contradições que nós, ocidentais, temos muita dificuldade em compreender, como bem apontou Cerchesov.

A história da alma russa é a história dos seus líderes megalómanos e sanguinários, da crença colectiva num destino grandioso quer nos sucessos, quer nos fracassos, de um misticismo que ferve no caldeirão dessa alma e se derrama para a religião, a política e a literatura, de uma grandeza terrível que parece sempre em risco de colapsar e arrastar na sua queda o resto do mundo. Foram os russos que ergueram o farol do comunismo, um farol com voz de sereia que, afinal, atraía os navios para as rochas. Quando a desgraça parecia inevitável, superaram-se em Estalinegrado. Quando o sistema soviético parecia sólido, ruiu como um baralho de cartas. Esta selecção russa juntou-se às narrativas inesperadas, neste caso de triunfo (relativo, bem sei), que não só contrariou os prognósticos catastrofistas, como dificilmente existiria sem eles. A indiferença dos compatriotas, também eles incapazes de compreender certos traços da alma russa, tornou-os co-autores do sucesso da selecção.

Se jogaram bem ou não, é assunto para os especialistas da bola. Que Cherchesov tinha um desígnio, lá isso tinha. Após a exibição de docilidade estratégica contra a Espanha, quem diria que a Rússia era equipa para atacar com tanta ferocidade a Croácia? No entanto, há quem atribua o desempenho dos russos a jogadas na fronteira da legalidade. O espectro do doping pairava sobre as conversas e diz-se agora que, antes de entrarem em campo, os jogadores cheiraram bolas de algodão embebidas em amoníaco, substância permitida mas que estimula a respiração e melhora o fluxo de oxigénio no sangue. Mas, acreditem, o doping decisivo para os russos foi o doping espiritual. Tal como os uruguaios são louvados pela garra charrúa e os espanhóis de antanho eram respeitados pela furia, os russos merecem a nossa consideração por serem capazes de ressuscitar nas ocasiões mais improváveis graças aos suplementos de alma. Eu, que não quereria Cherchesov para treinador do meu clube, era bem capaz de lhe confiar um exército, uma nação. Com ou sem amoníaco.

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