Em 2030 a epidemia da infecção VIH/SIDA vai terminar! Este é o objectivo mundial definido pela Organização das Nações Unidas (ONU). O governo português assinou este compromisso, que passa por atingir a meta dos 90-90-90 em 2020: 90% das pessoas com infecção VIH estarem diagnosticadas, 90% destas estarem medicadas e 90% das anteriores estarem com carga viral indetetável.
O tratamento da infecção VIH tem um benefício individual (com diminuição da morbi-mortalidade das pessoas infectadas) mas também um beneficio em termos coletivos, de saúde pública. Sabemos atualmente que uma pessoa VIH positiva sob tratamento e com virémia indetetável não transmite a infecção, pelo que o tratamento dos doentes vai reduzir significativamente a taxa de novas infecções.
A Direção Geral de Saúde (DGS) está consciente deste facto e tem influenciado de forma muito positiva a adopção de medidas legislativas. Estão preconizadas medidas para aumentar o diagnostico da infecção (como sejam a disponibilização de testes nas farmácias sem requisição médica ou o rastreio alargado do VIH pelos centros de saúde e organizações não governamentais) bem como para melhorar o acesso das pessoas infetadas ao sistema de saúde (nomeadamente pela obrigatoriedade de marcação de consulta hospitalar em 7 dias após o diagnostico ou o despacho recente que determina a deslocação de médicos especialistas hospitalares aos estabelecimentos prisionais para realizarem consultas no âmbito das doenças infecciosas).
Também é fundamental referir que a DGS implementou a PrEP (profilaxia pré-exposição) determinando o acesso aos hospitais a toda a população não infectada em risco de adquirir a infecção VIH de forma a disponibilizar tratamento preventivo. Todas estas as medidas, que estão devidamente legisladas, são excelentes. O problema está na sua implementação prática.
A grande maioria dos serviços hospitalares que devem cuidar destas pessoas infectadas ou em risco debate-se diariamente com uma severa escassez de médicos especialistas. A situação é particularmente preocupante nos hospitais da grande Lisboa, que em conjunto seguem mais de metade dos casos nacionais (51,2% dos novos casos de infecção VIH em 2016 residiam no distrito de Lisboa, de acordo com o mais recente relatório do INSA). Não só não se procedeu à necessária atualização dos quadros como os pedidos de autorização para substituição dos médicos que saíram (por reforma ou rescisão) se arrastam durante meses no Ministério da Saúde/Finanças.
A atribuição de vagas para médicos recém especialistas, efectuada por concurso nacional (que esteve bloqueado durante mais de um ano e que se encontra atualmente em curso) foi no mínimo peculiar. Não foi solicitada aos hospitais uma listagem atualizada de carências na especialidade de Infecciologia. Atribuíram-se as vagas de forma aparentemente aleatória, inclusivamente a hospitais que não pretendiam mais médicos com esta especialidade. Todas as vagas de novos especialistas foram alocadas a hospitais fora de Lisboa ou do Porto, o que poderá traduzir uma vontade política de descentralização mas que nesta especialidade em particular e atendendo à maior concentração de casos de infecção VIH nos grandes centros urbanos (e de outras infecções, como sejam as hepatites B e C ou a tuberculose), é contraproducente.
Legislar sem apetrechar os serviços hospitalares de um número suficiente e adequado de profissionais é condenar ao fracasso qualquer política e poderá comprometer os resultados e os compromissos nacionais para com a ONU no que se refere ao controlo da epidemia. Mais do que isso, compromete o acesso e os cuidados prestados às pessoas infectadas ou em risco de infecção por VIH em Portugal.
Médica Especialista em Infecciologia. Diretora do Serviço de Infecciologia do Hospital Professor Dr. Fernando Fonseca, Amadora.