Com o corrupio das compras de Natal, para se poupar tempo, as caixas self-service disponíveis nos hipermercados são cada vez mais utilizadas. Curiosamente, enquanto os clientes passam freneticamente os produtos pelo leitor do código de barras, muitas vezes a funcionária da caixa permanece imóvel, numa aparente indolência, em frente a um ecrã de computador. Perante esta situação algo caricata, é justo colocar a seguinte pergunta: Mas por que é que andamos a fazer isto?

Atualmente realizamos ao longo do dia vários trabalhos que há algum tempo atrás eram executados por profissionais. Por razões de rentabilidade económica, as grandes empresas estão a transferir os custos do trabalho para os consumidores. Senão, vejamos: quando vamos à bomba de gasolina temos que pegar na mangueira e encher o depósito de combustível. No supermercado temos que colocar as compras no saco ou registá-las na caixa automática em vez do funcionário. Nalgumas lojas, se quisermos comprar uma estante ou uma mesa, somos obrigados a fazer a montagem. No restaurante de fast food, no final da refeição, somos convidados a levantar o tabuleiro e a separar o lixo. As férias raramente são marcadas por um funcionário de uma agência de viagens. Através da internet escolhemos o destino, e acabamos por fazer as reservas do bilhete de avião e do hotel. Os tradicionais embrulhos de natal, em várias das grandes superfícies, deixaram de ser feitos por funcionários, sendo apenas disponibilizados o papel, a tesoura e os laços decorativos. Tudo isto assenta numa estratégia do tipo “faça você mesmo, pois isto tem custos para nós”.

Sem nos apercebermos, diariamente perdemos imenso tempo desempenhando trabalho não remunerado para muitas empresas que o deixaram de disponibilizar. Este trabalho chama-se “trabalho sombra”. O termo “shadow work” foi introduzido pela primeira vez pelo filósofo austríaco Ivan Illich em 1981 no seu livro publicado com o mesmo título.  Este tipo trabalho veio alterar a relação comercial entre produtores e consumidores. Tradicionalmente, os produtores produzem bens e serviços e vendem-nos aos consumidores a troco de dinheiro. Mas com o trabalho sombra, o consumidor não paga apenas o produto ou serviço, como ainda se junta ao vendedor, ajudando-o a produzi-lo.

As empresas ao transferirem algumas funções para os consumidores reduzem o número de empregados. Deste modo, diminuem os custos do trabalho e aumentam os seus lucros, mas por outro lado agravam o desemprego. Além disso, esta situação tem custos para todos nós, já que nos faz perder tempo, retira-nos energia que seria melhor utilizada noutras atividades, e aumenta o nosso cansaço diário.

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Será que faz sentido que, no final de um dia de trabalho, numa deslocação ao supermercado para comprar alguns produtos alimentares, sejamos nós a executar o trabalho que supostamente deveria ser feito pela funcionária da caixa? Curiosamente, depois da ida ao supermercado — ­ e sem termos consciência disso — ainda continuamos a realizar trabalho sombra. Quando à noite atualizamos o Facebook estamos a trabalhar para esta empresa que vive à custa do nosso trabalho. Todos dias milhões de pessoas “trabalham para o Facebook gratuitamente” fornecendo conteúdos. Ou seja, o Facebook fornece gratuitamente uma ferramenta, mas o trabalho de criação e introdução dos conteúdos é realizado pelos utilizadores.

Presentemente, na nossa sociedade, vivemos um paradoxo curioso: apesar de terem sido criados inúmeros meios tecnológicos para nos facilitarem a vida, tudo parece mais difícil e o ritmo do dia a dia não pára de aumentar, contribuindo para o nosso desgaste. Trabalhamos muito mais do que há algum tempo atrás. Estamos a desempenhar cada vez mais tarefas com a falsa crença de podermos ganhar tempo.  O trabalho sombra parece imparável, tendo-se infiltrado sub-repticiamente nas nossas vidas, como se fosse uma praga invisível.

Mas se o trabalho sombra pode trazer vantagens, reduzindo os preços e alargando a oferta de alguns bens e serviços, é preciso não esquecer que nos rouba tempo e energia para o lazer, contribuindo para uma sociedade mais desumanizada. Neste caso, as relações entre as pessoas estão a ser substituídas por interfaces robotizadas, agravando a nossa solidão, uma vez que se exclui o contacto humano. Vale a pena pensarmos quantas vezes entrámos num hipermercado, saímos com as nossas compras, e no final não trocámos com ninguém uma única palavra.

Médico Psiquiatra e Professor da AESE