Já muita gente tentou perceber o Tribunal Constitucional. As hipóteses são várias: é um caso de conspiração partidária? Ou de activismo judicial? Ou, ainda, de simples lotaria jurídica? Nada parece bater certo. Mesmo os que concordam em que o tribunal é um problema, não concordam sobre a localização do problema. Na Constituição, tal como é invocada pelo tribunal? No tribunal, tal como está definido na Constituição? Ou, simplesmente, nas pessoas destes juízes? Talvez ajude se invertermos a perspectiva, e encararmos o tribunal, não como causa, mas como consequência – e consequência, mais precisamente, do vazio político criado em Portugal pelo programa de ajustamento.
O Tribunal Constitucional emergiu do anonimato institucional durante a maré baixa do ajustamento, quando as forças políticas se retraíram, cada qual à sua maneira. O memorando da troika, em 2011, pareceu liquidar todas as expectativas anteriores acerca do futuro. As estradas, afinal, davam para o défice, e os diplomas para o desemprego. Mas nem o Governo, nem as oposições alguma vez definiram uma nova visão do que, de acordo com os seus princípios e as circunstâncias do país, convém e é possível fazer para além do programa de ajustamento. A recusa de compromissos no parlamento foi um sinal, não apenas de chicana facciosa, mas de relutância em arriscar. Toda a gente recuou para zonas de conforto bem definidas: no Governo, executava-se o programa, e chamava-se irresponsável à oposição; na oposição, encenavam-se velhas rábulas de “resistência” na Avenida e na Aula Magna, e chamava-se “fascista” ao Governo.
A discussão pública ficou entalada entre o alarmismo ideológico (“vem aí o neoliberalismo!”) e o zelo técnico (há que cumprir metas e normas europeias). Em Julho de 2013, chegámos ao extremo de ver um Governo que não parecia capaz de continuar, perante oposições que não pareciam capazes de o substituir. Os eleitores, entretanto, não apreciaram a “austeridade”, mas também não lhe descortinaram alternativas, e optaram por não se comprometer com ninguém, tornando sondagens e eleições sistematicamente indecisas. Nas autárquicas de 2013 e nas europeias de 2014, todas as derrotas foram grandes e todas as vitórias foram pequenas.
Foi no meio desta ausência geral de iniciativa política, por entre muita cacofonia acrimoniosa, que algumas peças legislativas do ajustamento acabaram à porta do Tribunal Constitucional, onde os juízes – escolhidos um pouco ao acaso, como agora admite quem os escolheu – ficaram sozinhos, com toda a gente a gritar-lhes que tinham o destino do país nas mãos. Poucos, como seria de esperar, mantiveram o bom senso. A maioria não resistiu a preencher o vazio político com as suas opiniões e leituras de autodidacta. Mas se podemos, a esse respeito, lamentar os magistrados, não devemos esquecer a causa: sem a paralisia do sistema de debate e decisão política, o Tribunal Constitucional não se teria transformado nesta espécie de câmara dos pares do reino improvisada. O activismo dos juízes é apenas o reverso do absentismo dos políticos.
Nada sugere que as coisas mudem. Passos Coelho propôs, entretanto, negociar reformas com o PS, em vez de as pôr na caixa do correio do Palácio Ratton. Poderia ser uma ocasião para a classe política recuperar a iniciativa. Mas o Governo, que devia estar fortalecido pela “saída limpa”, parece cansado. E as oposições, que deviam ter engordado com a “austeridade”, estão divididas (o PS), moribundas (o BE), acantonadas (o PCP), ou surreais (os dissidentes do PSD). O reinado do Tribunal Constitucional não chegou ao fim.