Desde o Verão de 2010 que tenho o hábito de pela manhã correr até à praia de Santo Amaro de Oeiras, dar um mergulho e regressar a correr novamente (consigo fazer isto durante todo o ano porque Portugal é um país fantástico). Nestes 14 anos não foram poucas as vezes que ao entrar no mar toquei em criaturas desconhecidas. Geralmente são peixes mas também já aconteceu com alforrecas. A sensação de estar no mar e tocar em vida desconhecida é, mesmo depois de mais de uma década de experiência, única: não falaria em medo mas também não falaria na ausência dele. É, no mínimo, algo desconfortável.

Quando o “Tubarão” do Spielberg saiu no Verão de 1975 não foram poucas as pessoas a ganharem problemas para entrar na água. Aquilo que o cinema explorou nesse filme, de o abismo oceânico poder matar qualquer banhista despreocupado, enraizou novos pânicos em pessoas que eventualmente se tinham esquecido da surpresa que o mar pode ser. Ainda hoje, quase 50 anos depois, o género cinematográfico dos terrores marítimos continua vivo nas bilheteiras (os únicos filmes que, na minha opinião, honraram realmente o legado do Spielberg foram os da série “Piranha”, que no número 2 serviu a estreia ao então realizador novato James Cameron).

Quando o mundo sabia menos acerca do mar, respeitava-o mais. Os antigos tinham o mar como o lugar dos abismos. Os abismos eram mesmo opacos, sem câmaras de filmar, sem cartas marítimas ou mapas, território do mais puro desconhecimento. Nós pensamos em água quando pensamos no mar mas antes quando se pensava no mar pensava-se em muito mais do que água: pensava-se também naquilo que estava além do nosso próprio pensamento. Nessa medida, os mares não eram apenas lugares na terra mas eram também a presença de outro mundo no nosso.

Não é, por isso, por acaso que uma das visões do Apocalipse é a de o mar acabar. Isto não significa que Deus tem má vontade contra o mar, até porque foi ele que o criou. Mas, no último livro da Bíblia, o Criador rescinde o contracto com o mar porque tudo passa a ser conhecido na eternidade e já não há espaço para o oculto. “E vi um novo céu e uma nova terra. Porque já o primeiro céu e a primeira terra passaram, e o mar já não existe” (Apocalipse 21:1). Reservo, ainda assim, uma pequena esperança de poder encontrar um novo tipo de oceano na eternidade—pergunto eu, português crente mas também fã da água: que tipo de céu poderá ser o céu sem mar?

Graças aos toques ocasionais em criaturas ocultas a minha paixão pelo mar comporta uma dose de receio. O prazer em mergulhar na água mantém os meus níveis de cautela ligados – amo com atenção. E tudo isto acontece a poucos metros da areia. Não sou um mergulhador profundo nem sequer um nadador muito eficiente. Sou apenas alguém que cai na água regularmente para se sentir refrescado, pouco sedentário e tocado pela bela imensidão do incognoscível. Calculem se adentrasse pelos abismos oceânicos: aí sim, a minha paixão pelo mar aumentaria, simultaneamente à minha consciência dos reais monstros subterrâneos. Os peixinhos e as alforrecas só assustam quem nada raso.

O mar é a garantia de que o nosso mundo tem outro nele. Quanto mais a pessoa mergulha no mar, mais se expõe à possibilidade de tocar no que não vê. E quando assim acontece, o mistério pode permanecer: o que toquei? Um peixe, uma alforreca? O mar faz-nos mais flutuantes, mais insignificantes, mais epistemologicamente abertos. Creio que muita da nossa teimosia vem do pouco que mergulhamos no mar. Os portugueses, pelo maravilhoso mar que têm, deviam ser um povo mais tocado pelo que não se vê. Há no nosso mundo pouco do outro, mas não é nada que uma passagem pela praia neste Verão não possa ajudar.

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