O sistema, ou o que se lhe queira chamar, está em alvoroço e, como derradeiro recurso para conter uma vontade popular que não lhe agrada, recorre aos tribunais para pôr em causa as escolhas eleitorais, ou para o que seja. E se os tribunais não dão a resposta pretendida, entra a alegação da interferência da Rússia de Putin e dos que estão “a soldo de Moscovo”. Culpas próprias? Não existem. Problemas reais ignorados? Também não. Descontentamento? Só o instigado pelas “redes sociais”, cuja manipulação, ao que dizem, se faz só no sentido contrário ao da impoluta informação de referência.

Este “último recurso” aos tribunais passou-se nos Estados Unidos, com os múltiplos processos contra Trump e com Joe Biden a acabar expeditamente com as acções judiciais que envolviam o seu filho Hunter e que o poderiam implicar, concedendo-lhe um indulto presidencial abrangendo os últimos 11 anos. Passa-se também no Brasil, com a acusação contra Bolsonaro e vários dos seus colaboradores, incluindo oficiais generais, de um pretenso golpe para impedir a posse de Lula. E em França, com o processo contra Marine Le Pen, que a pode tornar inelegível.

Independentemente do fundamento e da justeza das acusações, há uma convergência clara da Esquerda e do Centrão para parar judicialmente a vaga nacionalista popular que avança na Euro-América e que veem sempre com incrédula surpresa.

A última surpresa veio da Roménia no Domingo, 24 de Novembro, quando o nacionalista Cälin Georgescu saiu à frente na primeira volta das eleições presidenciais, com 23% dos votos.

Curiosamente, havia um nacional-populista indicado como favorito, mas não era Georgescu, era George Simion, historiador, economista, deputado e líder da Aliança para a União dos Romenos.  Porém, Simion acabou por ficar em quarto lugar, com cerca de 14%, e quem ficou em primeiro foi o inesperado Georgescu.

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Os que já tremiam com a possível passagem à segunda volta de Simion, mais se assustaram com o aparecimento de um nacional-populista desconhecido, a quem as sondagens não davam sequer 10%.

A recontagem

Recorreram, por isso, ao Tribunal Constitucional de Bucareste, que ordenou uma recontagem… mas a recontagem confirmou os resultados de 24 de Novembro.  O que fazer? A Rússia; havia sempre a Rússia e as redes sociais. Seguiram-se então as habituais referências ao envolvimento da Rússia ou à intoxicação do povo com fake news pelas redes sociais, neste caso o TikTok.

A queixa que originou a recontagem veio de um candidato do Partido Nacional Conservador Romeno, Christian Terhes, com 1% das escolhas populares, e de Sebastian Popescu, com 0,15% dos sufrágios.

A segunda volta de amanhã, 8 de Dezembro, vai então disputar-se entre Georgescu e Elena Lasconi, a líder do partido União Salva a Roménia. Lasconi ficou em segundo lugar na primeira volta, 2740 votos à frente do candidato do partido no poder, o Partido Social Democrata, que está no governo desde que caiu o comunismo e que Nicolae Ceausescu foi sumariamente julgado e executado, juntamente com a mulher, Elena.

Até lá, e dada a falta de colaboração do Tribunal Constitucional, Georgescu passa a estar “a soldo da Rússia”, daí a sua insistência na paz.

O descontentamento dos romenos deve-se sobretudo ao elevado custo de vida e ao que veem como a incompetência e a corrupção dos “partidos do poder”, os sociais-democratas de centro-esquerda e os nacionais liberais de centro-direita.

Nas eleições para o Parlamento, realizadas a 1 de Dezembro, manteve-se a liderança dos sociais-democratas (24%) e dos nacionais-liberais (14%), porque, embora os partidos nacionalistas ou “de extrema-direita” passem dos 30%, o voto está muito fragmentado. Destes, a Aliança para a União dos Romenos, o partido de George Simion, teve 18% –   e Simion já anunciou o seu apoio a Georgescu.

Uma sondagem do passado dia 1 dá Georgescu como vencedor da segunda volta, com 57,8% contra os 42,2 de Lasconi, a candidata centrista e pró-europeia. A eventual vitória deste nacional-populista, crítico do empenhamento da Roménia no apoio à Ucrânia, pode criar problemas a Bruxelas, já que, na Roménia, como em França, o Presidente da República é o comandante em chefe das Forças Armadas e o orientador da política externa.

Feito pelo TikTok

Georgescu é um destes candidatos surpresa com que já não nos devíamos surpreender. Com 62 anos e uma carreira tecnocrática em organismos ligados à protecção ambiental e à agricultura, áreas em que defendeu uma maior autonomia da Roménia em alimentação e energia, Georgescu não tem, praticamente, passado político. Só recentemente se aproximou dos nacionalistas da Aliança para a União dos Romenos, o partido de Simion, fundado em 2013.

O caminho de Georgescu para a popularidade fez-se nas redes sociais – sobretudo no TikTok, mas também no Youtube e no Facebook –, onde a sua presença é assídua e combativa (chega a aparecer em quimono de judo, de que é praticante). Defende o nacionalismo romeno, pratica o eurocepticismo e ataca a escalada verbal e armamentista anti-Rússia e até a presença em território romeno, em Deveselur, de uma base militar da NATO com um sistema de defesa anti-mísseis. É um devoto cristão ortodoxo e, como se não bastasse, mostra admiração por políticos romenos dos anos 30, como Corneliu Codreanu, o fundador da Guarda de Ferro, e o marechal Antonescu.

Dificilmente podia reunir mais e melhores requisitos para figurar em grande destaque na “lista negra” dos media de referência, que já o tratam carinhosamente por “Trump romeno”.

 

Nota: Nem de propósito.  Já tinha concluído e enviado para o Observador o artigo quando o Tribunal Constitucional da Roménia, afinal colaborante, anulou a primeira volta das eleições presidenciais… alegando suspeitas de influência russa.