Sentadinho no sofá a ver a penosa entrevista de Marcelo à SIC.
Num país que tem um quadro legal que consagra uma série de prerrogativas ao Chefe de Estado, nomeadamente no que respeita à sua inquirição perante órgãos judiciais por forma a minorar a exposição daquela figura a perguntas incómodas e a protegê-lo de respostas que poderiam minar a sua imagem enquanto figura máxima da nação. A justificativa, julgo ser entendida por todos: mais do que a protecção da pessoa, a protecção do cargo – um reduto institucional, à semelhança do que acontece com outras figuras do Estado. Ora, Marcelo, apesar de constitucionalista de excelência, nunca entendeu o magistério institucional, reduzindo-o à expressão ad hominem ou, in casu, ad selfie!
Vai daí, movido por uma irresponsabilidade egocêntrica, prestou-se, de livre vontade, à publicidade gratuita que, em tempos de pré-campanha, a televisão lhe proporcionava. E de lá saiu prostrado, humilhado, enfraquecido, exposto e apanhado na mentira. Penosa, portanto e, sobretudo, escusada.
A meio dessa entrevista pasmei com a justificação da ausência de qualquer contacto com a viúva de Ihor. Um “Peço desculpa, falhei!” teria ficado bem melhor do que a tentativa (suicida) de dizer que não telefona a pessoas individuais [isto depois de ter telefonado em directo para um programa televisivo a parabenizar uma apresentadora e depois de ter telefonado à viúva de um agente policial!]. Há toda uma humildade desconhecida a quem goza de poder e tem tiques de uma altivez tão paternalista que até incomoda…
Foi nessa altura que decidi baixar o som da televisão e iniciar alguns exercícios de voz.
Rapidamente, percebi a dificuldade em pronunciar Ihor Homeniuk. Percebi ser muito mais fácil verbalizar George Floyd; Estados Unidos do que Ucrânia; oito minutos e quarenta e seis segundos do que dois dias, sete horas e quarenta minutos; black lives matter do que ukrainian lives matter; decibel acima, decibel abaixo, parece que a língua se enrola e não se quer soltar. Já em contraponto, tudo o que se relaciona com a língua inglesa sai com uma clareza notável…
Julgo ser essa a razão por termos enchido as redes sociais de gritos de revolta por um condenável homicídio que ocorreu do outro lado do Atlântico. Fizemos manifestações, envergámos t-shirts, ajoelhámo-nos solidariamente e criticámos a nossa polícia como se fossem eles os responsáveis da morte de Floyd.
Ihor era ucraniano. Morreu cá, às nossas mãos, ao nosso cuidado. Não por excesso de força policial, num país pungente de tensões raciais e na sequência de acção policial directa no decurso de uma detenção. Ihor morreu num acto bárbaro na sua execução, perpetrado por três agentes do SEF quando se encontrava detido há dois dias, imobilizado nos pés e algemado atrás das costas. Morreu de asfixia mecânica dentro de umas instalações policiais.
E, não bastasse a bárbarie, o repugnante espectáculo que se seguiu. Ihor morreu em 12 de Março. Faz hoje nove meses…
E o que é que Portugal, enquanto Estado de Direito tem para oferecer durante esses nove meses?
- Ainda não conseguiu apurar o motivo da recusa de entrada do cidadão em território nacional;
- Um enfermeiro que lhe administra um fármaco sem estar habilitado para tal e sem que o cidadão seja visto por médico;
- Uma ficha preenchida por um inspector do SEF a declarar que o cadáver era proveniente da via pública;
- A primeira pronúncia pública do Ministro que tutela aquele órgão, quase um mês depois do óbito;
- A trasladação do corpo para o seu país natal paga pela viúva da vítima;
- Uma carta do Ministro dirigida à viúva, nove meses após o óbito…
Mas tem mais. Muito mais:
- Em 1 de Agosto, reabrem as instalações do Centro de Instalação Temporária do Aeroporto de Lisboa, colocando botões de pânico em cada um dos quartos e elaborando um novo regulamento de funcionamento daquele espaço;
- Regulamento esse, que apenas é comunicado internamente às unidades orgânicas do SEF em 26 de Novembro;
- A 7 de Outubro a IGAI envia as conclusões do relatório ao Ministério Público e à tutela, percebendo-se quer o timeline, quer o sucedido, quer ainda que, para além dos três inspectores directamente envolvidos, há mais nove com responsabilidades directas ou indirectas por acção ou omissão;
- Só a 30 de Outubro, o Governo anuncia uma auditoria aos procedimentos internos do SEF;
- A 6 de Novembro a família de Ihor pede uma indemnização ao Estado português;
- A questão, entretanto, ecoa em alguns órgãos de comunicação nacionais. Por isso – e só por isso, sublinhe-se –, a Directora Nacional do SEF apresenta a sua demissão em 9 de Dezembro (ao que consta será nomeada como oficial de ligação, fruto do processo Brexit, onde auferirá uma quantia de 12 mil euros por mês);
- Tendo sido demitida, Cristina Gatões já não terá que dar explicações no Parlamento;
- José Luís Barão, ex-chefe de gabinete de Cabrita e por este nomeado para Director Nacional Adjunto do SEF, em Março, e sem qualquer curriculum que não o cartão de militante do PS, é um dos nomes mais falados para encabeçar a direcção daquele serviço;
- E um Ministro que mentiu na Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias;
Isto posto:
Alguém acredita que Cabrita, Costa e Marcelo não sabiam e não compactuaram com isto?
Alguém aceita que se aguardem nove meses para tomar decisões (e algumas delas bastante discutíveis)?
Alguém compreende um botão de pânico numa instituição do Estado?
Alguém admite que, após se conhecerem as conclusões do relatório da IGAI (em Outubro), se tentem manter as coisas no silêncio e obscurantismo por mais dois meses?
E alguém pode contemporizar com o facto de tudo isto só vir a público e ter consequências políticas porque a investigação jornalística não quedou, não calou e não se intimidou?
Alguém aceita isto?
Cabrita não tem condições para continuar. Sabendo, não as tem por omissão – o que é crime! Não sabendo (cenário pouco provável), não as tem por incompetência grosseira – o que é grave!
A sua demissão já não será um acto digno. Será o único que lhe resta…