Instado a comentar o beijo do presidente da Federação Espanhola de Futebol a uma jogadora da selecção local, o prof. Marcelo respondeu: “Caros senhores, eu sou o presidente da República portuguesa. O meu cargo não é compatível com o comentário de insignificâncias, e a simples ideia de que o pudesse ser é francamente espantosa. Seria inadequado que eu falasse de insignificâncias em qualquer circunstância, e seria brutalmente ofensivo para os portugueses que o fizesse quando vivemos um momento crítico, uma crise económica, social e institucional sem precedentes próximos. É esta crise, que ameaça arruinar – e arruína – a sobrevivência digna de inúmeros cidadãos, que me deve inquietar – e inquieta. O resto não é assunto para um chefe de Estado, e sim para conversas de café e recintos de variedades. Tenham juizinho e passem bem. Bom dia!”

Estou a brincar. É claro que o prof. Marcelo não disse nada de vagamente parecido. Aliás, ninguém perguntou nada ao prof. Marcelo, que, ao contrário do rei de Espanha e de cerca de 100% dos estadistas da Terra com excepção do caricato sr. Sánchez, não apenas mencionou o famoso beijo como o fez de modo espontâneo e enquanto dissertava na Universidade de Verão do PSD: “Saí da Ucrânia a pensar o que é fazer política, o que é lutar por uma causa, até onde se deve lutar por uma causa, o que dá sentido à vida? É nestas situações extremas que se percebe o que é fundamental. E há coisas tão menores que ocupam a atenção das pessoas – por exemplo, se beijou melhor ou pior, ainda que tenha beijado, enfim…”

Depois, e só depois, é que os jornalistas o questionaram se se referia ao tal sr. Rubiales. E o prof. Marcelo, o mais alto magistrado da nação, prosseguiu com empenho e minúcia: “Uma questão de investigação de um crime de assédio sexual é uma questão grave, mas há questões mais graves, como seja a morte em guerra, de vidas humanas de um lado e de outro em número massivo. Portanto, em termos de destaque noticioso cada qual é livre, mas uma coisa é um ato criminoso individual para se investigar, outra é uma guerra com mortes e a vida humana vale sempre mais do que tudo isso.” Ou seja, o prof. Marcelo finge desvalorizar o vazio para criar um contexto em que possa comentar o vazio. É no vazio que o prof. Marcelo se sente bem.

Apesar das repetidas alusões às “vidas humanas”, um pechisbeque retórico, onde o prof. Marcelo se sente mal é na realidade, um aborrecimento que ele evita tanto quanto possível e que finta sempre que não consegue evitar. No dia seguinte às divagações acerca do importantíssimo beijo, o prof. Marcelo, anfitrião de uma feira do livro (?) viu-se importunado com o previsível novo aumento das taxas de juro. “São sinais que já começam a ser um bocadinho preocupantes”. Não acredito! Felizmente, os sinais limitam-se a começar a preocupar Sua Excelência, pelo que o grau de preocupação é ainda pequenito.

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Sendo porém compassivo, acrescentou, com fina rede analítica: “Não é uma boa notícia para todos aqueles que tem os seus contratos com a banca e que olham para juros mês após mês a subirem”. Espectáculo! Note-se a perspicácia do exame, que atravessa os factos com a rigidez de um laser: se a prestação da casa continua a crescer, isso é chato para os indivíduos afectados. Por sorte, o prof. Marcelo não é um desses indivíduos, e portanto mudou rapidamente de perspectiva para anunciar que a inflação aqui é baixinha, logo “comparativamente, a nossa situação é muito melhor que a da União Europeia”. Impecável! Mesmo as más notícias resultam do descalabro da Alemanha e da França, essas “grandes economias” (cito) cujos cidadãos vegetam na miséria, a invejar a prosperidade lusitana que tentam desesperadamente sabotar.

Nem uma palavra sobre os crimes cometidos na saúde, na propriedade, na educação, na justiça, na carga fiscal. Nem uma palavra, uma palavra sincera e decente, sobre a escuridão que, sob o beneplácito de Belém, o governo lançou para cima dos portugueses. Nem um vestígio de humanidade.

Resume-se assim uma semana de actividade pública do prof. Marcelo, que não destoa da anterior em que jurou venerar a Ucrânia sem nunca criticar o sr. Lula, que venera o sr. Putin e é venerado pelo prof. Marcelo. E, tirando a oscilação entre fato completo e a semi-pelota balnear, não destoa das quase quatrocentas semanas que leva numa presidência para acabar de vez com as presidências, razão que torna particularmente cómica a discussão em redor da sucessão. Marques Mendes? Guterres? O palhaço Companhia? Após os estragos causados pelo prof. Marcelo, até um naperon cumpriria as funções com superiores coerência e empatia. Tudo no prof. Marcelo é incoerente, indiferente, inconsequente: o tal vazio de que se falava. Ora por definição o vazio não preside ao país, e sim à destruição metódica do que sobra do país. Entretanto, a maioria da população mantém uma apreciação positiva de um presidente que a despreza em prol de abébias ao PS. Em troca, o PS enxovalha o presidente a cada oportunidade. Não comento relações masoquistas. O prof. Marcelo, que comenta o que calha mas jamais o que importa, também não comentará.

Nota: Alberto Gonçalves estará de férias nas próximas duas semanas. A coluna volta a 23 de Setembro.