As casas de banho vão passar a ter entrada livre, independentemente do género? Os alunos vão poder ser chamados pelo nome que quiserem? O problema dos políticos, dos “wokistas”, dos “ativistas”, sem querer generalizar a tudo e a todos, só pode ser mesmo a falta de realidade, a falta de contacto com o que se passa, realmente, no mundo lá fora.

Se me dissessem que estas novas “regras” iriam ser aplicadas já, a partir de hoje, por exemplo na Escola Básica Prista Monteiro, não sei se me desatava a rir ou a chorar.

A escola Básica Prista Monteiro é uma escola primária localizada no Bairro da Horta Nova, em Lisboa. Durante um ano letivo, fui professora substituta de atividades extracurriculares em três escolas do Agrupamento de Escolas Vergílio Ferreira. Passei muitas tardes na Escola Básica Prista Monteiro e posso, desde já, assegurar que a “lei das casas de banho e dos nomes” não servirá de muito, visto que a maioria das crianças dos 5 aos 10 anos que conheci já entravam em qualquer casa de banho por livre vontade, fosse no intervalo ou no meio da aula. Quanto ao nome pelo qual são chamados, mais cómico não podia ser, porque o maior desafio (para quem conhece, de facto, crianças) é que respondam quando são chamadas, seja por que nome for.

A Prista Monteiro é uma escola com um enquadramento social particular e vulnerável. A maioria das crianças tem problemas sérios de comportamento, de gestão das emoções, da raiva, da tristeza e dificuldades várias em expressar a frustração. Mas como não teriam, se não há quem segure, ampare aquela frustração? A forma como funcionam as chamadas atividades extracurriculares nesta escola é, no mínimo, sui generis, e passo a explicar: são contratados “professores”, ou seja, estudantes universitários, a maioria deles bem-intencionados, e que apenas desejam um part-time. No entanto, e por mais triste que seja admiti-lo, não há qualquer controlo de nada, seja da qualidade, do cadastro, do currículo, do que quer que seja. É através de um simples telefonema que nos dizem para estar às 16h na escola, “pegar” na turma 2º 1ª, enfiá-los numa sala ou num ginásio, e está feito.

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Só quem esteve enfiado no ginásio daquela escola com 40 crianças sabe dizer como é. Desde gritos descompensados a choros completamente inconsoláveis, desde agressões constantes uns aos outros, desde um dente que cai, de repente, como se fosse uma coisa normal que acontece todos os dias, porque o aluno X deu um murro no aluno Y, desde um professor ou professora cair porque também é derrubado no meio das lutas, desde insultos horríveis que custam ouvir da boca de crianças tão pequenas, desde janelas partidas com uma facilidade estonteante… Também há professores substitutos, cuja ordem e o poder se mostram através de gritos cavernosos, de puxões fortes nos braços, de negligência fria. Há crianças que passam uma hora inteira (sem exageros) a pedir colo, simplesmente a pedir colo, a esconderem-se nas nossas pernas. E é aqui que tudo se torna revoltante, repulsivo. Como assim votar projetos leis sobre casas de banho e nomes? Como é que é possível ficarmos tão cegos com a pasmaceira requintada do politicamente correto? A falta de conhecimento emocional, a pobreza, a negligência, as escolas sem condições, sem professores capacitados, sem aquecimento, com chuva a verter por todos os lados, com crianças a gritar por “ajuda” de todas as formas que sabem e conhecem… quando é que o inadmissível se tornou aceitável?

Conheci nesta escola crianças genuínas e maravilhosas (fossem os agredidos ou os típicos agressores), crianças que precisavam de tempo, do nosso tempo, que alguém lhes desse o seu tempo. Crianças que precisavam de professores preocupados, de amor, de carinho, de qualidade, e não de estudantes cujo objetivo principal é ganhar uns míseros trocos. E contra mim falo, embora saiba que dei tudo o que podia dar enquanto lá estive, que dei todos os colos que tive para dar, que tentei ouvir, que tentei ver o melhor em cada criança. Porque uma criança de 7 anos não é um delinquente, é uma criança, por mais que seja assim que tantos são tratados.

Nunca vi um psicólogo ou psicóloga de apoio na escola, mas vi demasiadas salas sem uma única caixa de lápis de cor. E, assim de repente, consigo lembrar-me de tantos colégios prestigiantes nas redondezas, onde os lápis caran d’ache são às paletes. São dois pesos e duas medidas para todos, o que nos vale é que a lei da casa de banho é igual para todos (que privilégio…).

Não tenho nada contra a aceitação e a igualdade que se procuram nestes projetos lei sobre nomes e casas de banho. A questão é que se tivermos à nossa frente uma criança com fome, frio, sono e falta de amor não a vamos mandar aprender matemática, vamos alimentá-la, aquecê-la, deixá-la descansar, fazê-la sentir-se segura. Não se ensina empatia às crianças através da criação de “regras” e obrigações nas escolas (nem através de avaliações, e da meritocracia inaceitável de tantas crianças que vejo a tornarem-se pequenos “empresários” à procura do número mais alto, à custa, muitas vezes, dos “big bosses” – os paizinhos, mas isso já nos levava para outra conversa). Normalmente, as crianças que recebem apoio, amor, compreensão, oportunidade de aprender a respeitar o outro e de se descobrirem ao mesmo tempo não têm qualquer problema com a diferença no outro, com todas as variantes que ela implica. A igualdade não se ensina com obrigações que já partem do princípio de que somos todos tão “diferentes e limitados” que precisamos de regras para nos entendermos.

As crianças precisam muito mais de amor e de tempo do que de qualquer outra coisa. Se houver amor e qualidade nos profissionais, ninguém vai dizer que não a uma criança de 6 anos que gosta de ser tratada por “Jo”, por “Manu”, por o que quer que seja. Façam projetos lei para arranjar pessoas que cuidem de todos os “Joões”, para arranjar psicólogos, para arranjar professores, para arranjar atividades como deve ser e deixem lá os nomes e as casas de banho.

Este texto é para o João, que conheci na Escola Básica Prista Monteiro e que, ao longo de várias semanas, me ofereceu vários desenhos assinados por ele. Um dia, o João pediu-me se podia fazer um retrato meu, e espero, de alguma forma, poder ter retribuído ao João a ligação e o amor que eu senti que o João me deu.