Introdução: é fácil entender o Brexit e o Trump. No fundo, no fundo, o Português acredita que os vinhos nacionais são dos melhores no mundo. Por isso, educar as pessoas na arte de beber bom vinho é bom, justo e necessário. O melhor então é ajudar o povo e tratar de impedir que os vinhos Chineses, essa gente sem Deus, circulem por aí e contaminem o paladar das nossas gentes. Proteger a produção nacional é por isso um bom desígnio nacional! Este raciocínio, absolutamente estúpido, tem enorme adesão. Passo a explicar em três actos.
Primeiro acto
‘Oh Elsa, vais presa? Não, vou dormir com o chefe!’ Lembro-me muitas vezes destas palavras e de um grande amigo que as proferia sempre que a conversa tomava rumos pseudo-intelectuais próprios de imbecis. Há uns anos atrás partilhei-a com uma colega, ‘cientista comportamental’, e conversámos um pouco sobre como quem ouve aquela frase fica condicionado por 2 possibilidades: ou a ‘Elsa’ vai presa, ou vai de facto dormir com o chefe. Os cientistas comportamentais explicam bem este tipo de limitações do ser humano: o indivíduo, depois de confrontado com apenas 2 possibilidades, tem dificuldade em imaginar, por exemplo, que a ‘Elsa’ possa ser irmã do chefe, legítima consorte ou alguém importante escoltada pelo ‘chefe’. O mesmo tipo de reacção que tem caracterizado a abordagem ao Brexit e a Trump.
Esta estupidez que nos caracteriza como humanos, torna-se evidente no nosso quotidiano e leva-nos a acreditar nas coisas mais irracionais, bem como a agir de forma sistematicamente estúpida. ‘Sistematicamente estúpida’ porque a estupidez tem essa capacidade incrível de se institucionalizar. Sobre o assunto outros dois colegas meus, Mats Alvesson e André Spicer, falam extensivamente em ‘The Stupidity Paradox’. As estupidezes que fazemos individualmente são facilmente transportadas para o plano do colectivo. E, de repente, temos pessoas verdadeiramente imbecis a gerirem-nos ou a governarem-nos mediante processos e práticas (sempre denominadas de ‘best practices’) completamente imbecis. Nas empresas o exemplo clássico são as práticas de avaliação do desempenho. Pese embora todos reconheçam, sempre em surdina, que a avaliação do desempenho de um colaborador é uma liturgia da estupidez, a aberração permanece. E sempre legitimada pela narrativa do mérito, mesmo que o mérito, como todos sabem, conte muito pouco. Mas não há uma única ‘alma’ que ‘abra a boca’. Alvesson e Spicer explicam detalhadamente porquê: porque todos sabem que quem ‘abrir a boca’ não é certamente um ‘team player’… e há que ser um ‘team player’, caso contrário lá se vai a promoção e a oportunidade de dizer aos amigos e família que ‘trabalhámos muito para chegar ali’… o que reforça os processos de avaliação do desempenho, e portanto legitima a estupidez.
Tudo isto acontece porque, dizem Alvesson e Spicer, as pessoas não param para pensar. E caso parem para pensar, não dirão o que pensam. E caso parem para pensar e acabem por dizer o que pensam, fazem-no ‘em segredo’: dizem o que pensam aos amigos mais próximos, usam o humor como forma escamoteada de crítica, etc. O ponto é: só quem é estúpido e não parou para pensar é que ficou espantado com o Brexit e de seguida com o Trump. Mas a estupidez não se deixa intimidar: agora descobrimos que a ‘americanologia’ e a ‘britologia’ não só têm carácter científico, como os ‘americanólogos’ e os ‘britólogos’ partilham entre si o facto de só conhecerem Nova Iorque (com sorte já estiveram em Boston) e Londres (com sorte estudaram em Oxford ou Cambridge). A estas pessoas nunca lhes ocorreu que os EUA talvez sejam mais do que Nova Iorque ou que haja vida para lá de Notting Hill.
Mas a estupidez é manhosa, e disfarça-se sempre. E eis que chegamos ao estado actual de coisas. Como explicar que os processos de avaliação do desempenho, exemplo que usei acima, são maus? Pois não são, o que é profundamente estúpido é aquilo em que se transformaram e que todos os que são sujeitos aos mesmos bem conhecem. E explicar isto é complexo, não sendo passível de ser reduzido a meia dúzia de ‘sound bytes’. Mas podemos sempre gritar na mesma: ‘Oh Elsa, vais presa? Não, vou dormir com o chefe!’
Segundo acto
Paremos para pensar. Quer com Trump, quer com o Brexit, assistimos ao seguinte: um grupo de indivíduos, que queria muito o poder e a todo o custo, alavancou 3 coisas: imigração, globalização e a ditadura do ‘politicamente correcto’. Qualquer reflexão pseudo-intelectual fora disto, é caso para gritar ‘Oh Elsa, vais presa?’. Em ambos os lados do Atlântico, duas estupidezes foram alavancadas até à exaustão: os emigrantes roubam empregos e a globalização é má. Por exemplo, no caso do Brexit, a campanha foi centrada na imigração que rouba empregos. Polacos e Romenos, desgraçados, tiveram direito a referências diárias. Mas como são Cristãos e brancos, e portanto membros da classe que destruiu o mundo, ninguém se preocupou muito. Lá está o terceiro hino à estupidez, a ditadura do politicamente correcto, a fazer o seu trabalho. Chegámos ao ridículo de até algumas revistas de orientação Cristã, Católicas e Anglicanas, só terem manifestado puro choque com a campanha quando foi lançado um cartaz com uma fotografia de refugiados. Sabemos que na fotografia não estavam nem Polacos nem Romenos porque a esquerda e a Igreja não gostaram do cartaz. Se os do Brexit não fossem estúpidos tinham lançado um cartaz com imigrantes brancos e aí já estava tudo bem! E estão a ver o problema que aqui está? É que estes pormenores escapam aos distraídos, aos que se deixam levar pela ‘cantiga do bandido’, aos que não estão nos locais, que não acompanharam a campanha ao pormenor, aos que não perceberam que o Brexit e o Trump são fenómenos cujas causas são antigas e perante as quais se abateu um muro de silêncio.
Mas há mais! Em ambos os lados do Atlântico foram usados, até à exaustão, exemplos concretos para ilustrar os malefícios da globalização: o ‘Rust Belt’, nos EUA, e Port Talbot, no UK. Claro que os estúpidos não entenderam como é que foi possível que Gales (onde fica Port Talbot) tenha votado para sair da UE quando é a zona do Reino Unido que mais subsídios recebe da UE… porque aos estúpidos não lhes ocorreu que os subsídios da UE não chegam directamente às pessoas, mas o desaparecimento da indústria do aço tem impacto directo na vida das pessoas da região. De quem é a culpa? Dizem os populistas, ‘da globalização e do capitalismo, claro!’ Qualquer reflexão pseudo-intelectual fora disto, é caso para gritar ‘Oh Elsa, vais presa?’. E tenho novidades para o leitor: e se eu lhe disser que em Port Talbot está um dos maiores armazéns da Amazon do Reino Unido? Curioso que a mesma globalização que destruiu a indústria do aço, tenha criado empregos por outra via. Mas isto foi esquecido, e muito esquece a quem não sabe ou andou a falar do Reino Unido a partir da sua experiência profunda ao visitar Londres. Mas quem foi a Port Talbot e viu, sabe… E sabe mais: sabe que a Amazon só resolveu parte do problema. Mais não seja porque não precisa assim tanto de trabalhadores… e lá está: dizer aos que por lá vivem que a globalização é má, é simples; explicar-lhes que imigrantes só agravam o problema, é lógico para aquelas pessoas. Falar do contrário é muito complexo, não é possível com meia dúzia de ‘sound bytes’ populistas, e esbarra sempre no muro de silêncio criado pelos ditadores do politicamente correcto. Aqui está a fórmula do sucesso. E o facto de os que a usaram terem tido sucesso não diminui o nível da sua estupidez!
E com grande simplicidade, sem espanto nenhum para quem parou para pensar, temos que em ambos os lados da aliança Atlântica, a qual só existe na cabeça de ‘intelectualóides’ mas que às pessoas não diz nada, assistimos a duas campanhas eleitorais centradas na mentira e na alavancagem dos mais básicos dos instintos. Isto é, as campanhas tinham dois lados, ambos com níveis de estupidez sem paralelo. De um lado, estúpidos que recorreram a linguagem e a mentiras inaceitáveis para qualquer pessoa com carácter; do outro lado, perfeitos idiotas que acreditam que o mundo é aquilo que eles imaginam que deve ser. Vai daí que o povo vai a votos e, pensando que estava a votar para acabar com a imigração e a globalização, não tem dúvidas: acabe-se já com as duas! A direita conservadora diz que a imigração é má e ‘comprar o que é nosso é bom’, vamos já deportar os ilegais e começar a exportar; a esquerda diz que a globalização é má, rasguemos os acordos de comércio internacional! Fica por explicar como é que se exporta sem acordos de comércio, mas nisso só pensam os liberais selvagens.
Mas o estúpido, convencido que é inteligente, gosta de insistir… é um fenómeno incrível! Vai daí que depois do acto eleitoral consumado, não contente, o estúpido volta à carga e inunda o espaço público com os mais imbecis dos comentários. Os nossos ‘americanólogos’ e ‘britólogos’ de serviço gostam é de analisar as categorias sociais de quem votou errado. Vejam lá que esta gente não se tinha apercebido que o racismo não acabou, que as mulheres continuam a ser alvo de descriminação sistemática, e que ninguém quer refugiados lá em casa!
O estúpido não percebeu que há outros estúpidos que também não pararam para pensar! Vai daí que não percebeu que muita gente ainda acredita que os pretos não se ‘safaram’ porque são burros, que no México traficam muita droga, que as mulheres pelo menos uma vez por mês e durante uma semana são inaturáveis, com a consequente perda de produtividade e limitações à tão desejada progressão na carreira… quanto aos refugiados, é tudo bombista!… vamos é colocar toda esta gente num barco e afundar o mesmo em alto mar!
Pérola da estupidez: dizer estas coisas é hoje em dia ‘piada de balneário’… e se for político recentemente eleito, é pragmatismo… Não ocorreu a muita gente que se perguntarem ao povo se quer refugiados e imigrantes muçulmanos lá por casa, o resultado é óbvio… Não ocorreu a muita gente que o povo não leu, nem quer ler, Foucault, Bourdieu e toda a brigada intelectual bem pensante… Eu li, e adorei! Mas eu posso dar-me ao luxo de ser bem pensante, politicamente correcto e de fazer figura de parvo. A grande maioria não pode. E a mim hoje em dia só me apetece gritar bem alto ‘Oh Elsa, vais presa? Não, vou dormir com o chefe!’
Terceiro acto
Por 3 vezes este ano, muitos dos liberais Portugueses trataram-nos a todos como estúpidos. Primeiro, embora se afirmem contra a intervenção do Estado na educação, ficámos a saber que esse seu raciocínio tem uma excepção curiosa: está tudo bem com o Estado desde que o Estado esteja com a Igreja! Depois, foi o Brexit… muitos dos nossos liberais não tiveram dúvidas em apoiar de forma explícita a visão estatista e centralizadora da economia defendida por Farage e Boris. E quando Theresa May fez um discurso vergonhoso no congresso dos conservadores, com referências constantes ao papel do estado e à necessidade de o reforçar, os nossos liberais bateram palmas no facebook! Esta semana ficámos a saber que Theresa May entregou 700 milhões de libras de contratos à Virgin para gestão do serviço nacional de saúde e que a ‘geringonça’ vai ajudar a financiar os nossos empreendedores (‘desgraçadinhos’ que têm que ir pedir dinheiro a fundos de risco estrangeiros, esses ladrões selvagens). Mas os nossos liberais não comentaram.
Isto tem duas explicações: porque já sabíamos desde há alguns meses que eles gostam é de parcerias publico-privadas e porque estavam distraídos a apoiar o Trump. E chegámos ao terceiro momento hilariante do liberalismo ‘tuga’: o apoio dos liberais a Trump! O liberal ‘tuga’ reinventou o liberalismo! É isso mesmo, caro leitor. A corrente já tem nome e tudo. Chama-se ‘tuga liberalism’. O ‘tuga liberalism’ declara-se contra a imigração, coloca as mulheres no seu devido lugar (em frente à palma da mão ou na cozinha!), rasga acordos de comércio livre internacionais, é anti-globalização e quer que todos sejamos Católicos (caso o cidadão não seja Católico, paga multa por ser ateu via os impostos para pagar a educação dos Católicos).
O ‘tuga liberal’ é um ser muito curioso: defende quase tudo o que os liberais defendem, sendo inclusive, tal como os liberais, contra a ditadura do politicamente correcto. Contudo, partilha com a esquerda o discurso anti-globalização (‘o que é nacional é bom’), tem ódio de morte a acordos de comércio internacionais (adora exportar e detesta ter que importar) e descobriu sozinho qual a melhor forma de educar os outros (colégios Católicos para todos já!).
Os ‘tuga liberals’ são pessoas que um dia pararam para pensar e no dia seguinte leram a doutrina social da Igreja! Tudo isto curto-circuitou os seus cérebros, sendo que a publicação de livros sobre algo que não existe, como o pensamento económico do Papa e a liderança com amor, também não ajudou a causa.
Temos já dados para melhor entender a vida interior do liberal ‘tuga’: à Segunda, Terça e Quarta lê resumos de Mises e Rothbard na Wikipedia, faz posts no facebook durante o horário de trabalho e vê debates sobre ‘bola’; à Quinta lê ‘O pensamento económico do Papa Francisco’ e ‘Liderar com Amor’; de coração já cheio, chega Sexta que é dia de reunião da Equipa de Nossa Senhora onde se debaterá uma daquelas pérolas e se pedirá a canonização imediata dos autores; Sábado é dia de ir ouvir um empresário liberal muito Católico, que tem negócios com filhos de regimes totalitários, discursar sobre ética empresarial (isto aconteceu em 2016… não há mesmo limites para a falta de vergonha!… e eis que, de repente, o liberal ‘tuga’ não sabe afinal como lidar com o politicamente correcto…); Domingo é dia do Senhor e na missa o liberal ‘tuga’ reza pelos agricultores e pede a Nossa Senhora de Fátima que tal como fez o sol andar aos tombos assim ilumine os loucos que querem acabar com subsídios.
A vida não é fácil para o liberal ‘tuga’: a vinha que plantou, no terreno que herdou, com subsídios dos Nórdicos, está em risco por causa dum ataque ‘dos vinhos estrangeiros’ feito aos empreendedores-subsídio-dependentes da nação! É uma vergonha que o resto do mundo goste de vinhos Chilenos! Vai rezar pelos proteccionistas: fechamos a Europa ao mundo, obrigamos os Ingleses a ficarem por cá, proibimo-los de beberem o ‘Casillero del Diablo’ e convidamos o Trump e família para uma prova de vinhos no Douro, que claramente tem os melhores vinhos do mundo! Só temos que obrigar as pessoas a beberem e elas ficam logo a perceber! Isto vai lá com muita oração e, claro, apoiando o candidato certo… no entretanto pensa que se for muito piedoso talvez o Senhor lhe mande um sócio como o do empresário que ouviu no Sábado: na Segunda em vez de ler Mises e Rothbard vai procurar livros sobre ética. Mises e Rothbard não são os melhores autores para entender a conferência que ouviu no Sábado… Na Terça telefona-me… digo-lhe que ganhe juízo, leia mas é o Evangelho em vez de livros para crianças, nunca mais vá a conferências parvas, que se deixe de Wikipedia e que vá consultar ‘os números’ em vez de Nossa Senhora (verificará que os maiores beneficiários de subsídios do Estado são, há muitos anos, as empresas e não os pobres)… desliga o telefone aos gritos de ‘ateu selvagem neoliberal!’
Ora a vida do liberal ‘tuga’ ficaria facilitada se alguém lhe explicasse que a doutrina social da Igreja não trata de economia, mas sim de antropologia filosófica. Eu podia explicar, mas não dou aulas gratuitas… Mas como também sou Católico vou ajudar partilhando o pouco que sei: ‘Oh Elsa, vais presa? Não, vou dormir com o chefe!’
Professor Universitário