Os jornais online de ontem estiveram plenos de fake news sobre um documento entregue na sexta-feira na Assembleia da República que enquadra o Orçamento do Estado. Puderam ler-se frases como “governo prevê aumento de 20% nas receitas fiscais.” Ou “governo prevê aumentar a despesa pública total em 19%”. O que é mais preocupante é que, na voragem mediática atual, dirigentes partidários reagiram a estas fake news como se fossem verdadeiras. Rui Rocha, qual Lucky Luke a disparar mais rápido que a sua própria sombra, veio logo a terreno dizer que considera “chocante” a despesa prevista no orçamento de Estado e que prefere legislativas antecipadas a um péssimo orçamento. Claro que os jornalistas e alguns dirigentes políticos foram enganados porque o governo PSD/CDS, à semelhança dos anteriores governos PS, nada fizeram para tornar informativa e transparente a informação constante e ausente do Quadro Plurianual da Despesa pública. Já lá vamos às fake news.
Antes ainda das eleições e da definição de quem estaria em São Bento e quem lideraria a oposição, escrevi uma carta aberta a Pedro Nuno Santos (PNS) e Luís Montenegro (LM) a sugerir que quem perdesse as eleições deveria dar algum espaço a quem as ganhasse para governar e que os primeiros dois orçamentos deveriam passar. Alguma estabilidade política é um valor em democracia. Só a estabilidade permite ver se um governo tem de facto um projeto para o país, revelá-lo aos cidadãos, e testá-lo minimamente. Só essa durabilidade mínima permite identificar em que medida todas as propostas que o governo está a implementar, de aumento da despesa e redução da receita faseadas no tempo, são consistentes com a sustentabilidade das finanças publicas. Mais, eleições antecipadas em nada de fundamental mudariam o cenário político parlamentar: provavelmente o PSD subia pouco, o PS manteria, o Chega desceria, mas manter-se-ia uma maioria de direita parlamentar. E a instabilidade gerada seria má quer para o funcionamento do Estado quer para a economia. Os juros da dívida certamente subiriam! O país, e bem, não gosta de eleições antecipadas sem uma boa justificação.
O programa do governo não foi chumbado na Assembleia da República, nem foi aprovada uma moção de censura. O governo, se por um lado tem legitimidade democrática para governar com as orientações do seu programa, ao ser minoritário, não deve ser insensível em particular às posições do principal partido da oposição.
E o que disse PNS no domingo passado? Foi bastante claro. Que o PS não viabilizará o OE com as propostas de redução de IRC e do IRS jovem, nos termos apresentados pelo governo. Isto abre claramente um campo para entendimento, a que não chamo negociação. O governo pode perfeitamente propor uma redução mais baixa de IRC, desde já neste OE, com intenção de a prolongar nos anos subsequentes. A redução de um ponto percentual anualmente levaria a reduzir quatro pontos na legislatura. O caso do IRS jovem é mais complicado pois para além de injusto é inconstitucional. Mas em sede de IRS é possível, usando as deduções à coleta, beneficiar sobretudo os jovens, por exemplo nos encargos com a habitação. Haja criatividade e engenho é possível, e diria desejável, encontrar medidas para beneficiar a grande maioria dos jovens, e sobretudo os mais desfavorecidos. Outra ideia coerente de PNS é a de que se o governo quer contornar o Orçamento retirando aquelas propostas por via de autorizações legislativas — visto que elas só podem ser aprovadas com várias combinações de votos de PSD/CDS com Chega e IL — deve ser com esses partidos que o governo viabiliza o OE. Onde PNS não esteve bem foi na ideia de que se o OE chumbar e o governo governar com duodécimos está aberto para aprovar um retificativo com os aumentos já aprovados para vários grupos profissionais. Primeiro, porque é prematuro falar de retificativo, segundo pois o apoio político que o PS poderá ter destes grupos profissionais será provavelmente delapidado pela perda de votos de todos os restantes grupos profissionais que veriam o seus vencimentos estagnados com uma gestão orçamental em duodécimos.
Finalmente, temos a questão da informação. É óbvio que só é possível negociar com informação relevante que não foi disponibilizada. Aquilo que existe até ao momento é um QPDP, da qual pode ser extraída alguma informação, mas que é totalmente enganador pois não distingue dados consolidados de não consolidados (onde há repetição de todos os fluxos financeiros internos ao Estado), não distingue despesa e receita não financeira (ou efetiva) de financeira (em ativos e passivos). Como nada disto é feito e explicado não se percebe que o QPDP tem números sem qualquer significado económico! As receitas fiscais não são obviamente de 242 mil milhões de euros em 2024 (face a um PIB estimado de 277,2 mil milhões) nem aumentam 50 mil milhões para 2025. A despesa do Estado (administração central e segurança social) não é obviamente de 425,9 mil milhões em 2025 (seria muito superior ao PIB). O que é paradoxal é que é o próprio governo, através do QPDP, a fonte das fake news orçamentais. Será que é desta que o governo fará uma versão final do QPDP (foi entregue a “versão actual”) que a generalidade dos atores políticos e os jornalistas percebam?
O PS diz que não faz negociações sem ter dados credíveis. Estou convicto que não terá esses dados até muito perto da entrega do OE na Assembleia da República. Mas daqui não me parece vir mal nenhum ao mundo. O PS deve viabilizar o orçamento na generalidade, caso o governo faça uma modulação razoável das suas propostas, desta forma evitando uma eventual crise política. Apresentar as suas propostas de alteração na especialidade, mas não negociar o orçamento. Este será, o primeiro orçamento do governo que tem a responsabilidade constitucional de apresentar a proposta na AR. Que seja aprovado, com algumas propostas da oposição, sem ser totalmente desvirtuado, seja executado em 2025 e depois em Outubro veremos a execução feita, a sua exequibilidade e a qualidade das políticas implementadas.
A responsabilidade de evitar uma crise política está no governo e no PS, dado o carácter errático do Chega. Há ainda condições para isso, mas a transparência orçamental ajuda muito.
P.S.: Se o governo quer aumentar a transparência orçamental, e melhorar o QPDP sugiro a leitura das propostas que eu e a Susana Peralta fizemos aqui há pouco tempo.