Há 25 anos eu, o Samuel Úria, o Miguel Sousa, o Paulo Ribeiro, o João Marques e o João Eleutério começámos uma editora musical chamada FlorCaveira. Em 1999 o projecto desta editora tinha uma página na internet com um manifesto escrito sob a influência que o PSR (o partido que deu origem ao Bloco de Esquerda) exercia na Universidade onde estudei, a Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, tinha críticas dos discos que ouvíamos e tinha umas ilustrações (que o Paulo fazia). A FlorCaveira começou por ser uma confusão de intenções meio ideológicas e a música que fazíamos em baixa fidelidade.

Em 2000 eu, o Sami (como o Samuel Úria é tratado pelos amigos) e o Bruno Morgado gravámos um disco chamado “A Sessão MUG”, inspirado na “Million Dollar Session” que juntava o Elvis, o Johnny Cash, o Jerry Lee Lewis e o Carl Perkins. Não sendo essa a primeira gravação da FlorCaveira, tornou-se em grande parte a gravação primordial. Passados 25 anos, e já com quase 100 discos editados, creio que é no trio que formei com o Sami e o Bruno que continuam a ser descobertos os alicerces da FlorCaveira.

Talvez a imagem que vou usar não seja a mais ortodoxa mas creio que é a mais eficaz para explicar o que, 25 anos depois, a FlorCaveira ainda é a partir do seu trio musical fundador. Muito sucintamente, o Sami é as drogas leves, eu sou as drogas duras e o Bruno é a overdose. O Sami tem uma carreira profissional porque dá para manter uma vida normal curtindo umas drogas leves de vez em quando. Eu estrago a vida de quem se viciar em mim e tornei-me irrelevante para a maioria. O Bruno simplesmente mata quem se meter com ele.

Sem o Sami a FlorCaveira teria acabado em 2010. O Sami salvou a FlorCaveira quando ela, abandonada a mim, rapidamente se desintegraria. O Sami tem muita paciência em aturar os meus excessos e não será completamente justo que fique com uma imagem de moderação, como se uma pureza maior me pertencesse a mim e ao Bruno. Afinal, devemos-lhe a sobrevivência da FlorCaveira. Mas também é certo que, quer a consagração do Sami, quer a minha irrelevância, nada ameaçam nos ouvintes. O verdadeiro teste da FlorCaveira, a tentação do deserto que se segue à unção do baptismo, sempre foi o Bruno (que felizmente voltou a dar sinal de vida nos últimos tempos).

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

E é ainda neste campo das intoxicações químicas que convém entender a história da FlorCaveira no contexto da música popular portuguesa recente. A FlorCaveira só por um equívoco eventualmente abençoado se cruzou com a história da música portuguesa. Pelo tédio imenso que tende a caracterizar a cena artística nacional, as pessoas julgaram, quando a editora fez estrondo na imprensa, sobretudo entre 2008 e 2010, que podiam consumir a droga que nós éramos. Mas a verdade é que rapidamente ressacaram do pouco que experimentaram. Hoje uma pequena minoria fará a dose leve que a nostalgia lhes permite.

Há exemplos curiosos nesta aventura. O B Fachada e os Diabo na Cruz foram adictos temporários da droga da FlorCaveira mas sem grande demora se desintoxicaram do pouco que fizeram. Não nasceram para morrer nas nossas ruas de desgraça. O lema da editora, “religião & punk rock”, não inspira saúdes e carreiras mas desencaminhamentos e desencontros. Hoje continuo a acompanhar a música do Bernardo e do Jorge porque um viciado pode amar desintoxicados mas os nossos destinos diferem. O único não-fundador que ainda consome da FlorCaveira é o Manuel Fúria.

A FlorCaveira está hoje mais de acordo com o espírito do capitalismo à la Max Weber do que de acordo com A Música Portuguesa A Gostar Dela Própria. Hoje a FlorCaveira faz discos, faz livros, faz roupa e provavelmente tem mais para fazer no Brasil do que em Portugal. Apesar de vivermos no nosso país, pouco nos cruzamos com ele. Passámos de “editora prestigiada” a suspeita de ligada ao Chega. Portugal pouco ou nada nos diz, seja o de esquerda ou o de direita—sempre preferimos a inundação da Rua Augusta à Portugalidade. Como o Roberto Carlos cantava com algum sentido de oportunidade, não nos importamos assim tanto se a nação for para o Inferno.

São 25 anos de religião e punk rock. Não faziam sentido há um quarto de século, não fazem sentido hoje e têm todo o futuro do mundo.