Os cantores hoje são uma porcaria. Não pela voz que têm mas pela voz que não ouvem. As vozes dos cantores de hoje, que de facto são uma porcaria, continuam a ser boas vozes. São afinadas, por vezes doces, por vezes dramáticas, e provavelmente nunca houve tantos recursos para se cantar bem—haverá até algum excesso de afinação. A porcaria que os cantores são não tem nada a ver com a eficácia com que nos chegam aos ouvidos, mas com a ausência que têm nos seus ouvidos para a voz que existe além das suas. Os cantores hoje são uma porcaria porque o bem que cantam é o seu alfa e o seu ómega, o seu início e o seu fim, o seu triunfo e a sua tragédia.

Conheço muitos cantores. Geralmente são uns queridos mas não deixam de ser uma porcaria. Os cantores de hoje estão prestes a estoirar no talento que têm. Sentem-se na obrigação de compreender a admiração que conquistam como a consequência natural do talento que têm. Os cantores de hoje são uma porcaria porque não sabem existir fora do treino para o louvor que o talento deles suscita. Quanto mais talentosos são os cantores, mais surdos se tornam a qualquer voz fora deste circuito narcisista. Faz um cantor sentir-se querido e terás esta porcaria, ainda que possa ser a tal querida porcaria.

Como é que um cantor deixa de ser uma porcaria? Esforçando-se por ter uma vida que vá além do talento da sua voz. A melhor voz que existe é a que dá voz às outras, além das nossas. A melhor voz é a voz original, a que deu origem a todas as coisa—a voz de Deus, claro. Nietzsche, nada crente, sabia que depois de se tentar matar Deus, apareceriam trafulhas sacerdotes alternativos de novas religiões. Um dos territórios desses trafulhas sacerdotes alternativos seria a arte. Depois da tentativa de se matar Deus, candidatos ao seu lugar seriam mais que muitos impondo-se, por exemplo, como artistas. E, por isso, é precisamente numa área tão singela e incontornável como a da canção popular em que tantos fazem por viver da admiração que antes era entregue a Deus. Basta sair de um Verão, como agora saímos, para constatar que a devoção dominante da juventude é a prestada nos inúmeros altares onde cantores são adorados como divindades.

O que me provoca um comentário à parte, em relação ao fenómeno fascinante que foi o certame colectivo das Jornadas da Juventude. Se, por um lado, diríamos que os festivais de Verão são cópias laicas das velhas peregrinações religiosas, por outro também podemos reconhecer que o Papa, arrastado de palco em palco, não deixou de ser a Igreja Católica a imitar os festivais de Verão. Curiosíssima troca conceptual, a que nos foi oferecida neste inesquecível estio de 2023. Mas divago.

Quero terminar na porcaria que são os cantores de hoje. Já noutra ocasião vos escrevi acerca do impacto da canção “Hallelujah” do Leonard Cohen em mim. Quando aí pelos meus 18 anos me reapaixonei pela cantiga (depois de na infância ter sido criado pelo meu pai a ouvi-la), procurava, no fundo, tornar-me no tipo de cantor que agora acuso ser uma porcaria. Queria, ao cantar, atingir a adoração que os cantores de hoje atingem. Mas o Cohen fez-me entender que o que interessava era o “aleluia”, o louvor, ainda que “frio e quebrado”, diante do “Senhor da canção”—no canto interessa Deus e não os homens. Sinceramente, ainda hoje sinto a tentação de, ao fazer música, conquistar nos outros a admiração que dada a mim resulta num peçonhento espectáculo. E também é por isto que os cantores de hoje são tão claramente uma porcaria para mim: porque tirar essa sujeira dos meus desejos é uma tarefa até à morte.

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