Nunca como agora os animais desempenharam um papel tão relevante no panorama político nacional. No entanto, muitas das iniciativas legislativas e a esmagadora maioria do debate público sobre animais pecam pelo desconhecimento de um dos eventos mais importantes da história da humanidade: a domesticação.

O dicionário Larousse define domesticação como a “transformação de uma espécie selvagem numa espécie sujeita à exploração por parte do homem, com o objectivo de lhe fornecer produtos ou serviços”. Até há uns meses atrás, a versão portuguesa da Wikipedia dizia-nos que “a domesticação consiste numa relação ecológica do tipo escravagismo [sic] desenvolvido pelos seres humanos associados com outras espécies de seres vivos.” A visão clássica da domesticação, na qual assentam estas definições, baseia-se no conceito de especismo — a exploração pelos humanos de outras espécies animais — e remete para relações de poder nas quais as espécies dominadas sofrem o jugo opressor da espécie dominante contra a sua vontade. De aqui chegamos à ideia, enraizada em alguns círculos intelectuais, de que a categorização dos animais pelo homem em termos da sua função (produção, companhia) é uma construção social, construção essa que deve ser demolida em favor do edifício da igualdade animal.

Todos os animais nascem iguais perante a vida e têm os mesmos direitos à existência”, afirma a autoproclamada Declaração Universal dos Direitos dos Animais. Esta espécie de socialismo utópico da relação homem-animal tem vindo a ganhar influência crescente na sociedade portuguesa, catapultada pelas iniciativas animalistas do PAN e de outros partidos da esquerda parlamentar. É esta mesma visão da animalidade que conseguiu impedir a eutanásia de animais errantes por médicos veterinários – mesmo se tal medida fosse do melhor interesse de pessoas, animais ou da natureza — e que pretende abolir qualquer actividade com animais que se assemelhe a luta de classes.

Acontece que a domesticação não resulta de uma imposição do homem sobre os outros animais nem tão-pouco a sua função constitui uma construção social. Ao invés, a domesticação resultou de um processo mutualista de selecção natural da qual ambas as espécies beneficiaram para evoluírem juntas (co-evolução). O auroque, por exemplo, terá encontrado protecção contra predadores ao aproximar-se dos povoados do homem neolítico. O ser humano, por seu lado, aprendeu a tolerar um animal tão possante, capaz de destruir uma aldeia inteira, pela proximidade de uma fonte abundante de carne. Os auroques mais dóceis ter-se-ão aproximado o suficiente para serem lidados pelos seres humanos e com isso adquiriram uma vantagem evolutiva. Esta proximidade esteve na génese de uma das principais espécies domésticas, a vaca. É só passadas muitas gerações, quando o processo de domesticação está já em curso, que o homem toma o controlo da reprodução dos bovinos (selecção artificial), ao dar-se conta de todos os recursos que deles pode obter: leite e derivados, agasalho, utensílios e trabalho. Ao fazê-lo, desenvolveu uma extraordinária adaptação evolutiva: a tolerância à lactose e a capacidade de digerir leite.

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Mecanismos de domesticação algo semelhantes terão ocorrido com os ancestrais da ovelha (muflão), cabra (bezoar) e porco (javali), e o resultado está bem à vista: as espécies domesticadas estão entre as mais abundantes do planeta, pelo que é inegável que a aposta na domesticação lhes trouxe benefícios enormes enquanto espécies. Esta visão, moderna e científica, do processo de domesticação, retira ao homem o carácter opressor e tornam-no parte integrante da natureza dos animais domésticos. As espécies domésticas são-no tanto por opção própria como por iniciativa do ser humano.

Do neolítico damos um salto quântico até ao presente. A domesticação animal pouco se alterou até à primeira metade do século vinte quando uma vaca, para se manter saudável e dar leite, era tratada como um filho. Em Agosto de 1941, o jornal O Povo da Barca refere, por ocasião da feira do gado das Festas de S. Bartolomeu, no Concelho de Ponte da Barca, que se “Viram[] lá explendidos exemplares, bem tratados, com aquele cuidado e mimo que o nosso lavrador costuma ter com estes animais que os considera como fazendo parte da sua família.” A industrialização da agropecuária a partir do pós-guerra permitiu que o consumo de produtos de origem animal se expandisse mas trouxe desafios enormes para os animais domésticos e gerou situações onde a produtividade crescente colidiu com o seu bem-estar. Algumas formas de pecuária intensiva transformaram uma relação simbiótica numa posição de domínio e tornou-se necessário criar regras de bem-estar animal na produção. Muito há a fazer para melhorar a qualidade de vida dos animais domésticos e dirimir as questões ambientais da agropecuária, e é nisso que o debate público se deve centrar. Apenas uma coisa não deve ser posta em causa: o lugar dos animais domésticos junto do homem (e vice versa).

É um engano pensar que os animais domésticos estariam porventura melhor sem a intervenção humana e que devemos trabalhar para abolir todas as formas de ‘exploração’ animal. Em primeiro lugar porque, como vimos, o homem não roubou as espécies domésticas à natureza e elas são agentes activos no seu próprio processo de domesticação. As espécies pecuárias foram domesticadas como um recurso e os papéis que elas ainda hoje desempenham na sociedade são um reflexo directo desse mesmo processo de domesticação. Por outro lado, o papel diferenciado de que os cães e os gatos gozam é ele próprio um reflexo de processos de domesticação em muitos aspectos diferentes dos das espécies pecuárias. Em segundo lugar, aquilo que se considera exploração animal depende tanto de quem vê como de quem a pratica: é mais fácil identificar a crueldade de uma jaula de gestação para porcas (banidas da União Europeia desde 2013) do que a desumanidade de algumas formas de canicultura, que, ao abrigo dos amor pelos animais, geram cães que sofrem de patologias gravíssimas uma vida inteira, simplesmente para obedecerem à frivolidade dos padrões estéticos humanos.

Por fim, no que às relações homem-animal diz respeito, é preferível reformar do que abolir já que, de outra forma, não haveria fim ao ímpeto abolucionista dos defensores dos direitos dos animais: ontem as touradas, hoje as corridas de galgos e amanhã, quem sabe, as chegas de bois. Mas se os animais são todos iguais, porque não começar pelos animais de companhia e acabar com a criação de cães e gatos e a sua instrumentalização nas redes sociais? No entanto, a vida humana seria inconcebível sem os nossos amigos de quatro patas e não passará pela cabeça de ninguém pensar que o cão estaria melhor sem o homem. Assim sendo, estou em crer que, no seu íntimo, até o mais empedernido animalista saberá que os animais não nascem todos iguais perante a vida.

Manuel Magalhães Sant’Ana é especialista europeu veterinário em bem-estar animal

(o autor escreve segundo a antiga ortografia)