Ao longo dos anos, percebi que o argumento mais recorrente dos que, imprudentemente, discordam de mim é a alusão a misteriosas avenças. Se digo que o PS tem certa tendência para afundar a economia, sou um avençado da “direita”. Se duvido da bondade intrínseca do islão, sou um avençado de Israel. Se confesso passar férias nos EUA, sou um avençado da CIA. E se me desse para achar o presidente do Sporting uma figura divertida – juízo que pela minha saudinha nunca fiz ou farei – é porque apresentaria despesas a Benfica ou Porto. Até aqui, tudo bem. A partir daqui, tudo mal: é que a fama de avençado nunca se traduziu em benefícios materiais. Ou seja, andei imenso tempo à espera das transferências bancárias e, salvo as das publicações que me contratam, não chegava nenhuma. Aos poucos, já começava a acreditar que a história das avenças seria um mito indígena, como o Milagre de Ourique ou a lucidez das gémeas Mortágua.

Sucede que não é. Há meses, o país em peso conheceu o “caso” do Câmara Corporativa. Durante uma década, e através de milhares de “posts”, esse empenhado blogue praticara a nobre tarefa de aplaudir o génio de José Sócrates e denunciar a velhacaria intrínseca dos seus adversários. Os textos eram assinados por Miguel Abrantes, que uma jornalista de “causas”, à época próxima do ex-primeiro-ministro, afiançou ser um sujeito real (prova cabal: a senhora almoçou com ele). Entretanto, uma das pontas da Operação Marquês apurou tratar-se de um sujeito imaginário, pseudónimo de pelo menos um tal António Peixoto (possivelmente, a jornalista de “causas” esteve sozinha à mesa e nem reparou – é por causa destas cedências à fantasia que algum jornalismo perde a alegada credibilidade). Segundo o Ministério Público (MP), o sr. Peixoto auferia 3.500 euros mensais pelo fervor patriótico demonstrado no blogue. Eis, afinal, a célebre avença. O MP suspeita da origem das verbas (a do costume) e suspeita que outros indivíduos recebiam pelos mesmos meios para os mesmos fins. Hoje, em suma, a investigação pondera a existência de crime.

É neste ponto que eu e a investigação divergimos. Pelos vistos, o que as autoridades condenam é que se receba dinheiro para dizer bem do eng. Sócrates. Independentemente de o dinheiro ser sujo ou limpíssimo, o que me parece incompreensível é que se elogie o eng. Sócrates de borla. A primeira hipótese, não sendo um modelo de ética, ainda revela vestígios de racionalidade utilitária. A segunda revela um quadro psiquiátrico assustador. Dito de maneira diferente, uma coisa é ser mercenário, outra é ser maluco. Em vez de perseguir os infelizes que tentavam ganhar a vida – e que tinham pudor suficiente para ocultar nome e rosto –, o MP devia inventariar os que glorificavam o ex-primeiro-ministro por pura convicção. E encaminhá-los para avaliação no SNS.

A terminar, juram-me que também há gente a louvar o actual governo sem acolher uns trocos por fora. O quê, criaturas que crêem de facto na bondade ou no talento da frente de esquerda? Peço desculpa, mas não caio nessa, que isso é forçar a nota e até a loucura tem limites. Uma réstia de crença na humanidade leva-me a partir do princípio de que todos, todos, todos os entusiastas da “geringonça” são directa ou indirectamente avençados. E, se possível, tão imaginários quanto o amigo da jornalista de “causas”.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Notas de rodapé:

1. Enquanto o senhor Presidente da República recebe aos saltinhos de alegria, às vezes literais, cada notícia devastadora sobre o “desempenho” da nossa economia, ainda há pessoas que não engolem os mitos & lendas da propaganda. Infelizmente, são quase sempre refugiados sírios. Semana sim, semana sim, conhece-se a história de outra família de imigrantes que, depois de uns dias em Portugal, percebe a essência do lugar e volta a fugir apavorada rumo à civilização. A mais recente aconteceu em Alcanena, onde, a 25 de Janeiro passado, a autarquia instalou o casal e quatro filhos num apartamento do bairro Timor Lorosae (nem comento). A 6 de Fevereiro, a presidente da Câmara, que surgira em fotografias a distribuir prendas aos recém-chegados e tudo, admitiu que estes vão a caminho da Alemanha. Que se saiba, o senhor Presidente da República continua por cá.

2. Claro que há exagero nas acusações do dr. Centeno sobre a tentativa de “assassinato” do seu “carácter”. Este, coitado, faleceu há muito, soterrado pelas patranhas com que o proprietário justifica as trapalhadas em que se envolve. Nada disto, porém, justifica as exigências de demissão do ministro. Por um lado, porque, dado o peculiar governo em questão, seria impossível que o sucessor se distinguisse do actual em competência ou vergonha na cara: nenhum cidadão decente, formado em Harvard ou no Centro de Formação Profissional do Cacém, aceitaria integrar semelhante agremiação. Por outro lado, porque o estilo calamitoso do dr. Centeno começa a ter a sua graça, e o episódio da CGD é apenas um exemplo das alturas a que a baixa comédia pode chegar. O homem – uma “referência de confiança” na opinião do dr. Costa – passou mais de um ano a rir vá-se lá saber do quê. Agora é a nossa vez, e isso não tem preço. Ou tem, por acaso altíssimo, mas merecemos um luxo ocasional.