É comum ouvirmos a expressão “a Ucrânia é o celeiro da Europa”. No entanto, podia também ser chamada “maternidade da Europa” pois a Ucrânia é dos destinos mais procurados do mundo por casais em busca de barrigas de aluguer. Esta prática, chama-se gestação de substituição e é uma situação em que uma mulher se predispõe a engravidar e a entregar a criança após o parto, renunciando aos poderes e deveres próprios da maternidade, mediante a celebração prévia de um acordo, materializado por um contrato.

Trata-se de um tema controverso e polémico, de enorme complexidade ética, moral, social e jurídica, que divide opiniões e levanta muitas dúvidas. Para começar, o mundo da gestação de substituição é muito lato. Tanto pode ser permitida apenas de forma altruísta (sem pagamento envolvido) como pode ser comercializada. O material genético pode ser oriundo do casal beneficiário ou de doação por terceiros. Tanto pode ser utilizada por casais com diagnóstico de infertilidade como sem um motivo médico, entre outras diferenças.

A gestação de substituição é regulada de diferentes formas pelo mundo. Na Europa, a gestação de substituição é proibida em vários países como a Áustria, Alemanha, França, Noruega, Suécia e Estónia. É permitida de uma forma não comercial em outros (Reino Unido, Grécia, Dinamarca, República Checa). Não está regulamentada por lei na Bélgica, Espanha e Finlândia. E é legal de forma comercial na Bielorrússia, Rússia e Ucrânia.

As companhias de barrigas de aluguer ucranianas dominam cerca de um quarto do mercado mundial da gestação de substituição. Em teoria, apenas são elegíveis casais heterossexuais que apresentem um comprovativo de matrimónio. O centro de reprodução humana BioTexCom, com mais de uma década de experiência, tem central em Kiev e advoga na sua página oficial ser o centro “com maior taxa de sucesso, menos número de tentativas e garantia de 100%”. Tem um pacote que denomina “tudo incluído” que inclui motoristas particulares, programa cultural e turístico para os casais, apoio jurídico, hotéis e, claro, todas as despesas relacionadas com os medicamentos e procedimentos necessários. Tudo isto, segundo se continua a ver na informação oficial, sem limite de idade, com ampla base de dados de dadoras de óvulos, equipa multilingue e altamente profissional e as melhores mães de substituição do mundo. A cereja em cima do topo da barriga é que a Ucrânia é dos países com preços mais atrativos, que vão de 50 a 60 000 euros por gravidez. Cerca de metade do que se pratica nos EUA (90 a 180 000 euros por gravidez).

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O grande crescimento deu-se quando países como a Índia, a Tailândia e o Nepal se viram obrigados a encerrar as suas fronteiras para esta prática pelas acusações de violação dos direitos humanos. Há muitas histórias aterradoras, com arrependimentos e quebras de contrato de uma das partes, abortos forçados, crianças abandonadas, entre outros. No entanto, muitos advogam que as mesmas violações ocorrem na Ucrânia. Mykola Kuleba, comissário da Presidência ucraniana para os Direitos das Crianças, em 2020, defendeu que a Ucrânia se tornou num supermercado internacional de barrigas de aluguer: as mulheres incubadoras e os bebés mercadoria. Para Kuleba, a facilidade deste mercado explora as baixas condições económicas no país e viola os direitos das crianças, algo que se veio a agravar primeiro com a pandemia a COVID-19 e agora com a guerra.

Desde a invasão da Ucrânia em Fevereiro de 2022, vários casais pelo mundo fora têm estado em verdadeiro terror pelos seus filhos que ainda estão no país. A empresa refere que transferiu todos os bebés e embriões para lugar seguro no subsolo, e terá sido algures num bunker em Kiev que já nasceram várias destas crianças. Ainda na sua página, o centro envia uma mensagem de tranquilidade ao escrever que todos os bebés estão a são e salvo e bem acompanhados. No entanto, muitos pais continuam sem acesso aos seus filhos. Estima-se que haja pelo menos 1000 gestações em curso de casais estrangeiros na Ucrânia.

Portugal não é exceção. Várias mães de substituição ucranianas têm sido trazidas para o nosso país para continuar em segurança a sua gravidez. O Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) confirmou que recebeu pedidos de ajuda de 15 casais para viabilizar a vinda dessas crianças para Portugal. A Associação Portuguesa de Fertilidade refere que podem estar em causa ainda mais casais, entre os bebés que já nasceram e os que vão ainda nascer. No entanto, não existe nenhuma base de dados oficial.

E qual é o ponto da gestação de substituição em Portugal?

Em Portugal, a primeira lei que abordou a “maternidade de substituição” data de 2006, rejeitando totalmente as suas formas gratuitas ou onerosas e criminalizando a última. Em 2016 foram feitas alterações à lei da Procriação Medicamente Assistida (PMA) – Lei n.º 25/2016) – e foi introduzido o conceito de “gestação de substituição”, admitindo-se esta prática em condições específicas: gravidez decorrente de técnicas de PMA, sem o material genético da própria gestante mas sim de, pelo menos, um dos beneficiários. Todo o processo teria de ser supervisionado por órgãos competentes e, muito importante, o contrato teria de ser altruísta. No entanto, este artigo foi considerado inconstitucional pelo Tribunal Constitucional. Várias modificações têm sido introduzidas desde então, mantendo os pilares em cima descritos e culminando na promulgação, pelo Presidente da República, em novembro de 2021, da alteração do regime jurídico aplicável à gestação de substituição. Apesar de já ter sido publicada em Diário de República (Lei n.º 90/2021) falta ainda que esta lei seja regulamentada. Ou seja, não estão criados os processos para que seja aplicada e os interessados não podem apresentar as suas candidaturas.

Enquanto isso não acontece e, atrevo-me a dizer que mesmo depois disso, pois a lei que se propõe em Portugal é muito específica, muitos casais procurarão a gestação de substituição fora do país. Para encaminhar estes casais existem várias empresas como a Gestlife, que se intitula como a “agência líder de gestação de substituição em Portugal”, para além de ter sucursais em oito outros países. Promete orientar os casais que pretendam recorrer a esta prática em todos os passos do complexo processo, incluindo escolher o melhor país onde o realizar e como financiar e, posteriormente, como legalizar a filiação da criança em Portugal. A Tammuz family é outra agência internacional que também opera em Portugal. A lógica é a mesma, orientar casais que pretendam ter a sua “barriga de aluguer” em países como os EUA, Ucrânia, Colômbia e Georgia.

O negócio das clínicas de fertilização é, por vezes um mundo bem pantanoso e sombrio. Por exemplo, numa era em que já é possível a manipulação genética dos embriões, escolher a cor dos olhos das crianças é apenas a ponta do iceberg. O Admirável Mundo Novo, criado por Aldous Huxley, leva este “futuro” ao limite ao imaginar um universo distópico em que os bebés são gerados num laboratório onde são programados. Por outro lado, as mulheres tomam medicação para mimetizar as alterações hormonais próprias da gravidez e assim ultrapassarem as necessidades dos seus relógios biológicos. A gravidez como a conhecemos hoje é considerada algo do mundo dos “Selvagens”. Huxley acertou em muitas coisas, terá visto também isto?

É certo que, em muitos casos, é a única forma que muitos casais com infertilidade têm de alcançar o sonho de ter filhos. Ainda que com as suas limitações, é para estes que a lei portuguesa está desenhada, o que me parece bem. Em muitos outros casos esta é apenas uma forma “mais fácil e simples” de obter filhos. E é aqui que o enredo se complica, a rampa se torna escorregadia, e todo o processo ganha contornos éticos muito complexos.

Fiquemos-mos pelas preocupações atuais. Sim, a dos bebés presos na guerra e a dos pais aterrorizados pelos seus filhos longe. Mas, mais abrangente do que isso, a fragilidade dos direitos das mulheres e das crianças neste mundo. É necessário estabelecer padrões internacionais para a gestação de substituição, de forma a proteger as populações vulneráveis daquilo que é um mercado muito lucrativo. Não esqueçamos também a enorme assimetria de oportunidades que existe em Portugal na gestação de substituição. É urgente que seja regulamentada esta lei e que seja acessível aos casais para quem esta é a (única) luz ao fundo do túnel, e não apenas àqueles com condições financeiras para ir procurar além-fronteiras o que necessitam.

Catarina Reis de Carvalho tem 32 anos e é médica Ginecologista-Obstetra no Hospital de Santa Maria, Lisboa. Paralelamente, é assistente convidada na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa e aluna doutoranda do Centro Académico de Medicina de Lisboa. Pertence ainda à Ordem dos Médicos. Juntou-se aos Global Shapers Lisbon em 2017.

O Observador associa-se aos Global Shapers Lisbon, comunidade do Fórum Económico Mundial para, semanalmente, discutir um tópico relevante da política nacional visto pelos olhos de um destes jovens líderes da sociedade portuguesa. O artigo representa, portanto, a opinião pessoal do autor enquadrada nos valores da Comunidade dos Global Shapers, ainda que de forma não vinculativa.