Depois do 25 de Abril de 1974, surgiram pelo país fora muitos democratas de toda a vida. Pessoas que não só, muito oportunisticamente, aderiram de imediato à nova situação política, como também acharam por bem refazer o seu passado, mais ou menos colaboracionista com o antigo regime. Apesar de não se lhes conhecerem quaisquer méritos oposicionistas, declararam-se retroactivamente antifascistas, com tal veemência que ninguém se atreveu sequer a supor que tivessem sido outra coisa que não impolutos progressistas “desde sempre”.

Também há “católicos retroactivos”: ilustres ateus ou agnósticos recém-falecidos que, sem mediar qualquer conversão in extremis, nem sinal ou leve suspeita da mais vaga fé cristã, são declarados, para efeitos exequiais, retroactivamente católicos. Nestes casos, a “conversão” não é em vida, mas depois do óbito; não é o próprio que a realiza, mas os seus familiares e amigos, que o “convertem” à força, por conveniência social.

A razão desta forçada transformação póstuma de alguns notáveis cadáveres de não-crentes, mais ou menos impenitentes, decorre de uma exigência canónica e de um “must” social. Com efeito, só os fiéis têm direito aos ritos funerários da Santa Madre Igreja e, por isso, se o “ente querido”, embora baptizado, era tudo menos católico, será forçoso reconvertê-lo, com efeitos retroactivos, para que se justifique a respectiva celebração eucarística. A razão social é óbvia: um funeral sem missa é tão desconchavado e sem graça quanto um casamento civil. Por outro lado, as famílias dos defuntos apreciam muito o “evento” piedoso, sobretudo se ocorrer num templo majestoso e com um coro a abrilhantar o acontecimento. Um funeral de excelência, como prometia o slogan de uma agência do ramo.

Não será difícil arranjar quem, na liturgia, pondo de lado a Deus, que para ali não é chamado, faça a homenagem do “irmão não crente”. Mesmo quando se trata de alguém publicamente conhecido pela sua atitude irreligiosa e anticristã, o orador ilusionista encontrará misteriosas manifestações da mais sublime espiritualidade. Se o extinto tiver sido um homem das letras, até se poderá ter a deferência de substituir o salmo, ou uma leitura bíblica, que afinal é apenas palavra de Deus, por um muito mais belo e oportuno texto do falecido. Se for músico, toca-se uma sua composição, ainda que seja muito a despropósito. Se tiver pertencido a uma fraternidade anticlerical, mesmo que nos mais altos graus, a homilia versará sobre as qualidades cívicas do “homem bom”, exaltado como santo laico de uma sociedade ateia. Era empedernido marxista-leninista-estalinista-maoísta? Não importa, porque na cerimónia sublinhar-se-á o seu empenho pela justiça social, que pregava com o entusiasmo e a generosidade de um verdadeiro apóstolo.

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Note-se que nunca é de bom tom referir a ultramontana hipótese da condenação, nem pedir – seria um insulto à memória do falecido! – orações de sufrágio pela sua alma. A bem dizer, não se trata de rezar, mas de canonizar, expeditamente, o “católico retroactivo”. Por isso também, qualquer advertência moral ou chamada à conversão será pudicamente silenciada, a contento dos participantes, que terão depois a amabilidade de agradecer a tão “bonita” quanto inócua celebração. E tudo se conclui, como em qualquer espectáculo, com uma estrondosa e sentida ovação.

Aconteceu para lá do Marão, onde mandam os que lá estão, segundo reza a tradição. Um velho pároco, pré-conciliar, foi oficiar uma missa de corpo presente e, como é da praxe, referiu-se ao extinto:

– Temos aqui este nosso irmão …

Mas, lembrando-se então de que nunca antes o tinha visto na igreja, atalhou o sermão com uma constatação nua e crua como o granito da região:

– … temo-lo aqui porque o trouxeram, porque ele nunca cá pôs os pés!

Talvez ao rude prior transmontano faltasse alguma sensibilidade pastoral, mas não a coerência na fé que, pelo contrário, escasseia em algumas celebrações, em que parece abundar uma certa mundanidade eclesial.
Graças a Deus, a Igreja está sempre de braços abertos para acolher os pecadores arrependidos. Há muitos incrédulos que se convertem à hora da morte e para todos os homens, sem excepção, há esperança de salvação. Mas, das ladainhas aos “católicos retroactivos”, libera nos Domine!