Há um fundo de verdade na ideia feita de que “os políticos não ouvem os cidadãos”, convém começar por reconhecer. Uma ideia que tem sido mal interpretada e mal respondida, sobretudo à direita e para seu próprio prejuízo. Em Lisboa, a tentativa de Carlos Moedas chama-se Conselho de Cidadãos, um órgão constituído por 50 pessoas sorteadas entre quem se inscreve. Com funções exclusivamente consultivas, não tem qualquer poder deliberativo. Já começou a dar problemas. Gerou-se um conflito com os representantes eleitos dos partidos, que duvidam da legitimidade do órgão. A esquerda acusa Moedas de seguir as indicações apenas quando concorda com elas. Para surpresa geral, a primeira reunião destes sábios tirados à sorte decretou logo uma sentença para acabar com 80 porcento dos automóveis em meia dúzia de anos. Para surpresa ainda maior, os partidos da esquerda exigiram de Moedas que ele a executasse.

A propósito desta agitação, foi promovida, pela isentíssima extrema-esquerda dos deputados “independentes” – são dois, eleitos nas listas do PS –, uma sessão pública na Assembleia Municipal de Lisboa. Todos os peritos e estudiosos defenderam a existência do Conselho de Cidadãos. Com argumentos encantadores, e outros preocupantes.

Houve quem argumentasse, por exemplo, que o Conselho de Cidadãos poderia ajudar a traduzir normas, editais, portarias, e restante tralha regulamentar numa linguagem compreensível por pessoas sem experiência jurídica. Uma ideia adorável. Não fosse dar-se a coincidência de esse trabalho ser já uma obrigação dos governantes, dos deputados, dos assessores e dos jornalistas. É também para o que servem – ou deviam servir – os vespeiros de empresas de “comunicação” que enxameiam os partidos políticos e lhes sugam os recursos. Atribuir esse papel a um órgão externo é uma desautorização da classe política. A vida pública portuguesa não tem de estar condenada a contratar medíocres para encobrir a mediocridade uns dos outros.

Mas ouviram-se, acima de tudo, argumentos preocupantes. Por exemplo, um considerou que “o papel dos eleitos é receber um caderno de encargos”. Não é. Ou talvez seja noutras “democracias”. Aqui, os eleitos começam por ser candidatos. Compete-lhes conhecer a cidade e saber interpretá-la; conceber, com base nisso, um programa político sensato e aplicável (o tal “caderno de encargos”, em língua de pau); depois, submetê-lo a eleições e, por fim, executá-lo. Mais do que um papel, esse é o compromisso dos eleitos perante os cidadãos.

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Outro estudioso declarou que “a cidade é um laboratório cívico e político de inovação”. Não é. A cidade não é nem pode ser um laboratório, e muito menos nas mãos de governantes. Os cidadãos não são cobaias, nenhum poder público tem o direito de os submeter a experiências de coisa nenhuma. É um abuso e uma intenção inaceitável, e própria da esquerda.

Outro ainda quis encontrar uma maneira de pedir contas aos membros deste espantoso Conselho de Cidadãos, ou talvez de os castigar, defendendo que “só há verdadeira cidadania com a co-responsabilização”. Sim, é indispensável que o sistema democrático preveja mecanismos de responsabilização, como já prevê. Mas não desta maneira. Nenhum órgão consultivo tem de prestar contas por actos de governação, e nenhum órgão político com poder deliberativo pode ser composto por membros tirados à sorte. Os responsáveis políticos são os deputados e os governantes eleitos, no caso dos municípios, os vereadores. Os cidadãos têm a responsabilidade de votar, no caso de algum partido lhes merecer a confiança. E aos sábios do tal Conselho compete-lhes produzir opiniões. Ninguém garante que serão mais reflectidas, ou mais prudentes, do que as dos académicos – já vimos que se equivalem. Mas ninguém elegeu nenhum destes senhores. A horrível palavra “cidadania” é cada vez mais confundida com democracia directa.

Foram argumentos dos peritos, oradores convidados para a sessão pública, é bom repetir. E não de Carlos Moedas. Mas Moedas devia ouvir estes argumentos com apreensão.

Há um pressuposto doentio da presença dos poderes públicos em todos os cantinhos das nossas vidas; e uma inversão de papéis que é contrária à democracia representativa. Esse pressuposto é próprio da esquerda. Carlos Moedas foi eleito pela direita, contra uma candidatura da esquerda.

Imagina-se o debate político como se todo o indivíduo quisesse ou devesse “ter voz” todos os dias e sobre todos os assuntos, o que garantidamente não é verdade. Os eleitores de Moedas confiaram-lhe um programa. Já falaram, e são esses os cidadãos que a direita deve ouvir. Não têm o hábito dos “activistas”, portadores das palavras do radicalismo; que aparecem em todas as sessões públicas, que estão dominados pelos partidos da esquerda, que querem ser tomados por interlocutores e se fazem passar por “representantes”; mas ninguém os elegeu.

É neste sentido que, à direita, “os políticos não ouvem os cidadãos”. Os eleitores da direita estão ocupados com a vida deles, o seu trabalho e as suas famílias. Acreditam na democracia representativa. “Falam” quando votam, e não querem ser incomodados até às eleições seguintes.