Para mim o lugar mais bonito de Lisboa é a esquina da Rua da Lapa com a Rua de São Félix. Se a pessoa vier na Rua da Lapa no sentido de oeste para leste, a Rua de São Félix surpreende-nos pela direita, como se a cidade se encovasse subitamente, engolida pelo Tejo. O rio fica ao fundo mas parece que está a galgar a terra, em atitude de a engolir de surpresa. Não sei se parece que a cidade está a cair para o Tejo ou se é o Tejo que está a trepar por ela acima.

A maior parte das vistas do rio que nós lisboetas louvamos tende a oferecer harmonia. Uma das que descobri há pouco tempo e que gosto de mostrar, até por ser menos conhecida, é a do Chafariz das Necessidades. É verdade que o novo hospital da CUF estragou boa parte do que do rio se via mas ainda assim surpreende. A vista do Tejo do Chafariz das Necessidades consegue evitar multidões, ainda que já mostre sinais daquela estróina chunga que tirou a graça ao Adamastor—não são poucas as garrafas de vinho e cerveja despejadas no telhado em baixo do miradouro e sente-se o cheiro de ganza em horas mais concorridas.

Outra vista mais harmoniosa do Tejo é a do Alto de Santo Amaro. Esta é outro tesouro, encavalitada em Alcântara e escapando dos formigueiros turísticos. A capela redonda contribui para a beleza do lugar que nos oferece uma perspectiva do rio e da ponte que não é costume: ficam-nos mais abaixo mas pela esquerda, assim em tangente elevada (há um anúncio que a Martini fez em Lisboa nos anos 70 que exemplifica o ângulo e que pode ser achado no YouTube). E menciono apenas estas duas das Necessidades e do Alto de Santo Amaro que estão mais próximas, por fazer a minha vida de Lisboa por esta zona.

Mas, como dizia, são vistas da larga família da harmonia lisboeta. Se pensarmos em muitas outras, mais estereotipadas do postal da cidade, como São Pedro de Alcântara ou as Portas do Sol, a sensação é a nossa capital em paz consigo, convidativa e pronta para se aperaltar para os tops internacionais de paraísos turísticos. Está tudo muito bem mas o problema é precisamente esse, de estar tudo muito bem. Uma cidade não se ama só nos momentos em que está tudo muito bem.

Ainda mais na semana que passou, em que os nossos sonhos nocturnos voltaram a misturar-se com o nosso trauma nacional do terramoto, desidealizámos um pouco a beleza de Lisboa—afinal, esta terra ainda tem a capacidade de nos pôr a tremer. Talvez por isso, projecto neste texto a minha preferência pela esquina da Rua da Lapa com a Rua de São Félix como símbolo daquilo que Lisboa faz no meu coração: amo a minha cidade até pelo facto de lhe ver os dentes.

A esquina da Rua da Lapa com a Rua de São Félix é o ponto de desequilíbrio visual que mais me fascina numa cidade habituada a fazer-se meiguinha para a fotografia. É verdade que as esquinas seguintes da dos Remédios e da São João da Mata prolongam o fenómeno mas, na minha opinião, não o intensificam como a de São Félix. Quando atravesso a Rua da Lapa faço juras de amor à cidade onde nasci porque ela é linda. Mas nessa vertigem de um rio que pode assustar pela direita, e, com cadastro de já se ter portado mal, lembro-me que tudo isto é um ensaio para a única que superará Lisboa: a Nova Jerusalém.

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