É costume celebrar os atletas, mas apenas os praticantes, pois os que não praticam, que somos a maioria, somos ignorados ou, até, desprezados, o que é uma gritante discriminação e hipocrisia social. Nestes venturosos tempos relativistas, brada aos Céus a injustiça que diariamente se pratica contra os desportistas não praticantes.

A definição de desportista não praticante, por demais evidente, não requer grandes explicações: são os adeptos das competições desportivas que as apreciam das bancadas dos estádios ou, quando são transmitidas pela comunicação social, no sofá.

Os desportistas não praticantes somos muito mais completos do que os praticantes: estes, por regra – talvez com a única excepção do decatlo – dedicam-se a uma ou duas disciplinas desportivas. Nós, pelo contrário, abraçamos todo o tipo de modalidades – olímpicas, para-olímpicas e as mais que houver! – desde que admitam espectadores, sejam transmitidas pela rádio, pela televisão ou pela imprensa. Portanto, um desportista não praticante tem um conhecimento desportivo muito mais vasto e rico do que um simples atleta que, em princípio, só domina o desporto que pratica.

Os desportistas praticantes tendem a ser gratificados pela sua prestação desportiva. Jogadores há que, só por participarem numa competição, ganham rios de dinheiro. Há atletas pagos com salários e prémios milionários, nomeadamente os pilotos de fórmula 1, ou os jogadores de futebol.

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Pois bem, esta obscena relação entre o desporto e o dinheiro redunda num desprestígio da própria prática desportiva, pois o que move o atleta já não é o nobre ideal da competição, mas o vil metal. Quando um futebolista português trocou uma equipa catalã por uma madrilena, houve quem não lhe perdoasse a transferência, por se ter deixado “comprar” pelo clube que pagou mais. Ora os desportistas não praticantes não somos comprados, nem vendidos, porque temos um conceito muito elevado da nossa dignidade e não estamos dispostos a ser objecto desse vergonhoso tráfico. Também sobre esta perspectiva, que não é certamente desprezível, o atleta não praticante é de uma indiscutível superioridade moral!

O amor ao desporto dos atletas não praticantes não só é desinteressado como, até, muito sacrificado, pois temos de arcar com as despesas inerentes ao incondicional apoio ao clube, à equipa e à selecção nacional. Enquanto os jogadores são pagos, às vezes até principescamente, para actuarem num determinado jogo, corrida ou campeonato, os atletas não praticantes pagamos do nosso bolso a presença no estádio, custeando assim a prática desportiva, sem direito a nenhuma compensação económica pelo gasto efectuado, nem pelas deslocações realizadas para este efeito. Se isto não é exemplo de amor desinteressado e de generosa dedicação ao desporto, não sei o que seja!

Há ainda mais um aspecto moral, que não pode ser esquecido: há recorrentes denúncias de faltas de ética entre os desportistas praticantes, nomeadamente ciclistas, cujas análises revelam o recurso a substâncias ilícitas, que potenciam a sua capacidade física. Mas nunca se ouviu dizer que um espectador da volta a Portugal em bicicleta, do tour de França, do giro de Itália, ou ainda da vuelta de Espanha, acusasse doping! Portanto, a prática desportiva não está isenta de atitudes moralmente reprováveis que, no entanto, não acontecem no muito mais amplo universo dos desportistas não praticantes que, como é óbvio, estão num patamar ético muito superior ao dos outros atletas.

Nos jogos de futebol, por exemplo, não são raras as faltas, que podem levar até à expulsão do jogador culpado. Nas corridas de automóveis, há pilotos que arriscam ultrapassagens e manobras que não só põem em risco as suas vidas, como também as dos restantes pilotos. Ora não consta que nenhum atleta não praticante faça falta sobre os adeptos contrários. Foi por isso, aliás, que, quando a mulher de um desportista não praticante se queixou da falta que ele lhe fazia, pela sua quase exclusiva dedicação ao desporto, este respondeu, muito certeiramente: ‘Como é que eu te fiz falta, se nem sequer te toquei?!’ De facto, há coisas tão óbvias que nem é preciso recorrer ao VAR …

Entre os desportistas não praticantes, o maior mérito cabe, decerto, aos que assistimos às competições desportivas em casa. Em primeiro lugar, porque os que fazem longas viagens demonstram uma insensibilidade ambiental confrangedora, enquanto os que permanecemos em casa damos mostras de uma louvável responsabilidade ecológica. Depois, porque um estádio, terminada uma competição, é um espectáculo reprovável, sobretudo pelos restos de comida, garrafas de água e de cerveja abandonadas, também nas imediações das instalações desportivas. Pelo contrário, na casa de um atleta não praticante, concluída a transmissão da prova, por mais renhida que esta tenha sido, há apenas, quanto muito, umas quantas garrafas de cerveja e pratos de tremoços (que, em princípio, o cônjuge se encarrega de limpar, por uma questão da mais elementar justiça: que diabos, também não pode ser o desportista não praticante a fazer tudo!).

Há mais um aspecto relevante, do ponto de vista moral, que confirma a superioridade dos especialistas na modalidade do sofá, não só em relação aos atletas praticantes, como também aos não praticantes que assistem directamente às competições desportivas. Os que praticam, ou assistem presencialmente, proferem considerações de duvidoso conteúdo ético em relação ao árbitro, bem como à mãezinha do dito, ofendendo-os gravemente. Ora, o desportista não praticante, mesmo que expresse as mesmas judiciosas considerações, refastelado no seu cadeirão, já não ofende o dito árbitro, nem a sua extremosa progenitora, que o não podem ouvir.

Se, do ponto de vista moral fica claro, portanto, que a mais nobre atitude é, sem sombra de dúvida, a dos atletas não praticantes, porque não é reconhecido e premiado o seu inegável mérito?! Só faltava que fosse pela hipocrisia de pensar que um desportista não praticante não é, afinal, um verdadeiro atleta …

P. S. Atenção: qualquer semelhança com os católicos não praticantes não é mera coincidência …