Pode ser que a Frelimo saia incólume (ou pouco mal tratada) da crise pós-eleitoral em que Moçambique anda mergulhado. O partido-Estado que nunca deixou de ser e ao qual deve o controlo das instituições, dos recursos e da sociedade, permite-lhe essa façanha. A complacência internacional, com que na suas boas e más horas continua a contar, também ajuda. Apesar de também se ter comprimido. A sua capacidade para continuar a fazer da fraude eleitoral o meio para se manter no poder, essa, porém, entrou em declínio irreversível. O seu fim definitivo é uma questão de tempo.
O sério aviso à Frelimo para “acabar com a fraude” em que redundou a contestação popular dos resultados eleições de 9 de Outubro, não se ficou, porém, apenas por ela própria. Foi de certeza ouvido pelo MPLA e pela ZANU – os outros dois partidos que na África Austral ainda cultivam a fraude eleitoral – seu principal instrumento de sobrevivência. A chamada “irmandade da fraude”, que junta a Frelimo, o MPLA e a ZANU, tem razões de sobra para estar preocupada com o que se passa em Moçambique. O mecanismo da alternância partidária presta-se finalmente a ter o valor que nunca teve em nenhum dos três países.
Não é por acaso que a revolta popular contra a fraude em Moçambique é avidamente acompanhada em Angola. Pela oposição, por meios independentes da sociedade e até por alas do MPLA contrárias à linha da sua actual direcção, com alento e provavelmente com regozijo. Mas com manifesta inquietude a apreensão por sectores do regime conotados com o actual status quo, aparentemente por “temor” de reflexos nefastos da situação no seu país. A prontidão com que o embaixador de Angola em Maputo foi à sede da Frelimo manifestar o apoio do MPLA a Daniel Chapo e os préstimos que Venâncio Mondlane diz que o SINSE pôs à disposição do SISE para o localizar, são elucidativos do estado de espírito do regime angolano.
Foi num país da África Austral – Angola, 1992 – que pela primeira vez ocorreu um caso de fraude eleitoral em África. Nenhum dos muitos antigos partidos únicos africanos por simples efeito da queda do muro de Berlim deram por si forçados a render-se ao princípio das eleições multipartidárias conseguira sobreviver. Foi o que sem apelo nem agravo aconteceu ao PAICV, de Cabo Verde, e ao MLSTP, de São Tomé e Príncipe, ambos “varridos” com pouco mais de 20% dos votos.
Dois anos depois, em Outubro de 1994, nas primeiras eleições multipartidárias realizadas em Moçambique, a Frelimo seguia à risca os saberes e o know houw do “partido irmão” de Angola em matéria de fraude eleitoral. As mesmas manipulações, as mesmas artimanhas e a as mesmas falsificações, ressalvadas algumas diferenças de modo e de lugar: clonagem de urnas (que quer dizer substituição de urnas com votos autênticos dos eleitores por outras cheias de votos fabricados), viciação de actas eleitorais, etc. Mais ou menos o que a ZANU também passaria a fazer quando chegou a decrepitude política de Mugabe. Do “esquema” faziam parte o controlo político das máquinas eleitorais e dos tribunais aos quais compete validar os resultados eleitorais.
A ideia de que a fraude eleitoral está condenada em países como Moçambique e Angola (a menos que uma nova cortina de ferro desça algures no mundo, mergulhando-o nas trevas de novas tiranias), assenta em dois factores em especial. Um, a afirmação crescente de ambientes internos cada vez menos permissivos à fraude eleitoral, traduzidos em coisas como um considerável aumento de capacidades de vigilância para os evitar e numa reacção cada vez maior para os condenar. O outro, o esmorecimento constante de condições gerais para que os mentores e autores da fraude continuem a praticá-la.
Nas eleições de 2022 em Angola, o revés sofrido pelo MPLA em Luanda, sempre descrito como seu principal bastião, deveu-se simplesmente a uma combinação da superior capacidade da oposição e da sociedade civil para impedir a fraude, inversamente proporcional a uma maior incapacidade do MPLA para a fazer valer. O anúncio de gordas vitórias no resto do país, feito na hora, em vez de ao fim de vários dias, como era habitual acontecer, e o posicionamento nas ruas de Luanda de forças militares e policiais, foi como o MPLA reagiu ao imprevisto, num caso como forma de compensar o desaire de Luanda, no outro para prevenir reacções populares.
É de fácil verificação que as vozes que nas sociedades de Maputo ou de Luanda se levantam hoje e de forma cada vez mais aberta contra os seus governos, são alimentadas não apenas por sentimentos colectivos de insatisfação/inconformação decorrentes de penosos efeitos sociais de crises que parecem não ter fim, em geral consideradas resultado de fracas e dissolutas governanças, mas também a anseios de mudança, parte substancial dos quais devida a fenómenos de saturação política de que naturalmente se tornam alvo partidos há 50 anos no poder.
Quer dizer alguma coisa o facto de serem jovens aqueles que predominam nos protestos sociais de Maputo ou Luanda. Constituem a camada mais instruída e com mais apurada consciência cívica e política da sociedade, um ganho a que não é estranho o seu generalizado acesso aos telemóveis. O princípio da evolução das sociedades que tornou a mudança possível, distinguindo-os da juventude de há vinte anos, também lhes transmitiu um notório destemor. Não é por acaso que a igrejas e outras organizações da sociedade civil se põem cada vez mais do seu lado.
A tendencial redução da capacidade da Frelimo e do MPLA para continuarem a seguir as suas velhas políticas de fraude eleitoral, também não é estranha à circunscrição a ambos da chamada “constelação” da fraude na África Austral. As recentes eleições no Botswana, enaltecidas pela transparência que pela primeira vez marcou um acto eleitoral no país, deram a vitória à oposição. O mesmo, embora de maneira um pouco mais custosa, já tinha acontecido na Zâmbia, em 2021. E em países como a Namíbia e a África do Sul, há uma normalidade eleitoral.
A fraude eleitoral que permitiu ao MPLA e à Frelimo acrescentar trinta e quatro anos aos dezasseis que a sua fase ultra-revolucionária já lhes dera de poder, parece finalmente estar a tornar-se na sua perdição. A sua incapacidade para se reformar a sério, por simples temor de que isso viesse a pôr em causa aquilo que parecem ter como um “direito natural” – o desse manterem no poder – está a ser ultrapassada pela evolução das sociedades, num movimento que nunca deixou de ir despertando aqueles que dele fizeram parte para coisas como as desigualdades, as injustiças, as venalidades e as mordaças das suas governações.
Ao hino e à bandeira que a canção diz que os meninos do Huambo (podiam ser de Quelimane ou da Beira) festejaram com conquistas da independência, faltou juntar Estados de direito, apoiados em instituições independentes e fortes, capazes de promover e velar por valores como o desenvolvimento humano, o progresso económico e o primado das leis. Houve essa oportunidade quando a antiga ordem política internacional ruiu. Ou mesmo mais tarde, como em 2017, em Angola, com a chegada de João Lourenço ao poder. A cegueira da obstinação da conservação do poder não o permitiu.