Quando teve que rever a política seguida no começo da sua implantação na África Subsariana, na década de sessenta, a União Soviética concentrou o grosso da sua cooperação nos domínios da defesa e da segurança. A sua capacidade económica e tecnológica, os limites que a sua própria ideologia impunha à sua acção e até mesmo o seu fraco conhecimento do meio e das realidades africanas, tudo viria a demonstrar que estava privada de condições mínimas para se afirmar como parceiro económico de uma África em que começavam a soprar ventos de mudança.

Foi o que se viu na República da Guiné, de Sekou Touré, o primeiro país em que se fincou. Ainda por cima ali, onde chegara com a pretensão de ocupar o vazio aberto com a súbita partida da antiga metrópole, a França, com a qual passaria a ser comparada. Não tardaria muito a começar a verificar-se que as fábricas que o novo parceiro da Guiné punha de pé não tinham grande préstimo económico, que era curta a duração das estradas obra da sua construção ou que a exploração mineira a que se entregava no Boké não parecia ser competente e séria.

Houve esperteza na decisão dos soviéticos de passarem a dedicar-se à cooperação militar e de segurança. Em países recém-independentes, de estados geralmente fracos, muitos deles instáveis ou a braços com guerras civis (Angola, Moçambique e Etiópia) e dominados por novas elites muito mais interessadas em se conservarem no poder do que em satisfazer necessidades básicas da sua população, haveria sempre de ter mais poder influências quem lhes fornecesse armas e treino militar ou quem os ajudasse a montar e mantivesse oleados os seus aparelhos securitários.

O manancial de vantagens que para os soviéticos advinham da sua cooperação com África nos campos da defesa e segurança, incluindo as “oportunidades” assim abertas à promoção da sua ideologia comunista, levou-os mesmo a reservar a si próprios e aos seus satélites o exclusivo da actividade. Os países ocidentais podiam estar no plano económico, embora tantas vezes tendo de se sujeitar a regras e modelos de inspiração revolucionária por eles influenciados. Mas o campo militar e da segurança era deles.

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Os helicópteros militares Alouette-III (incluindo tripulações) que Portugal deixou na Guiné-Bissau, após a independência do país, acabaram por ficar muito menos tempo do que o estimado pelas suas autoridades no pedido que deu origem à medida. Mal começou a instalar-se no país, chamando a si tudo o que tinha que ver com defesa e segurança, a União Soviética logo tratou de pôr à disposição do novo país helicópteros seus, MI-17, para substituir os portugueses. Mais tarde, em 1979, haveria de contrariar, com relativo êxito, um tímido acordo de cooperação militar com Portugal, cuja assinatura chegara a estar prevista no quadro de uma visita de Ramalho Eanes.

Já em 1986 viria a ser “às escondidas” dos soviéticos que os generais angolanos, puseram em marcha um plano destinado a recrutar em Portugal antigos “Comandos”. E deve ter sido para tentar amenizar eventuais reacções adversas que escolheram para intermediário dos recrutamentos uma empresa de Rosa Coutinho – Coteco, de seu nome. Os generais angolanos estavam desapontados com os maus resultados do conceito da “massa” (material pesado, unidades compactas) que os conselheiros soviéticos impunham à sua acção militar na guerra civil e queriam adoptar um modelo de luta anti-subversiva que eles próprios sabiam ser mais eficaz.

A rara grandeza atingida pela cooperação militar soviética com muitos países africanos (exércitos inteiros equipados com material soviético, organizados de acordo com modelos soviéticos, apoiados por conselheiros soviéticos), viria a fazer com que o legado viesse a ser naturalmente transmitido à Rússia no rescaldo da implosão da União Soviética. E assim se foram mantendo as coisas, por força de argumentos entre os quais o mais baixo custo do material soviético, a sua simplicidade tecnológica ou até a familiarização criada entre os sistemas de armas soviéticos e os exércitos nacionais.

A importância de Angola como principal cliente africano de armamento russo mantém-se até aos dias de hoje. Navios, aviões, tanques, espingardas, granadas, tudo é russo. Assim como continua a ser para academias militares da Rússia (Cuba idem) que são despachados os mamcebos angolanos formados no estrangeiro; ou que são predominantemente russos (outra vez também cubanos) os conselheiros militares colocados não apenas nas forças armadas, mas até no gabinete presidencial.

Os americanos, esses, continuam a sentir as mesmas dificuldades de sempre para “entrar” na área da cooperação militar com Angola. Nem fazendo-lhes crer que poderiam dotá-los de uma marinha de guerra muito mais capaz de lhes vigiar os seus mares do que a existente, baseada em velhos e imprestáveis navios de fabrico soviético. O melhor que conseguiram foram receber alguns oficiais angolanos na sua escola de marines para um curso de aperfeiçoamento da língua inglesa.

O dedo que países como Angola, Moçambique (até a Guiné-Bissau) se revelam incapazes de levantar contra a Rússia na questão da sua invasão da Ucrânia, é reflexo de uma ironia – amarga ironia. As autocracias em que a Rússia e muitos dos seus parceiros africanos viriam a caír, transformando numa miragem os estados democráticos de direitos a que deveriam tê-los conduzido os processos políticos os neles abertos no rescaldo do desmantelamento da União Soviética, mantém-nos aproximados. Ligados a antigos e novos laços e interesses, antigas e novas afinidades.

A neutralidade seguida por países como Angola ou Moçambique em relação a uma guerra tão ignominiosa como a que por mão da Rússia estalou na Ucrânia, nem o é tanto assim. A bom recato, “compreendem” a Rússia. No fundo, têm a certeza de que a sua  neutralidade nunca porá em causa créditos ou ajudas ocidentais de que dependem os seus orçamentos e as suas economias. Já uma “afronta” à Rússia, essa não é certo que não viesse a ter consequências.